terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Governo britânico adere à psicologia: Reino Unido adota ciência comportamental para políticas públicas

Por KATRIN BENNHOLD
Alex Gyani, psicólogo cujo trabalho é ajudar o governo britânico a fazer as pessoas voltarem a trabalhar, ficou intrigado por um estudo feito em 1994 com engenheiros desempregados no Texas. Aqueles que tinham escrito sobre a sensação de perder o emprego tiveram o dobro da probabilidade de encontrar um novo trabalho.
Gyani, 24, experimentou a ideia em um centro de empregos no nordeste de Londres, começando pelo caso mais difícil -um homem de 28 anos, recém-separado e desempregado durante a maior parte de sua vida adulta.
Toda semana, depois de ver um assessor de empregos, o homem escrevia durante 20 minutos -sobre se candidatar a dezenas de vagas e raramente obter resposta, sobre não ter motivo para se levantar de manhã, sobre sua ex-mulher.
Ao longo das semanas, suas palavras tornaram-se menos embaralhadas. Ele começou a recuperar a confiança. Antes de um mês, ele conseguiu um emprego em tempo integral na construção -o seu primeiro. O exercício de redação ajudou o homem a encontrar trabalho? Gyani não pode dizer com certeza. Mas foi o pontapé de um experimento social muito maior em curso no Reino Unido.
Um grupo de psicólogos e economistas está trabalhando para transformar a política britânica. Inspirado na ciência comportamental, o grupo se espalha por todo o país em centros de emprego, escolas e departamentos de governos locais e tenta fazer com que processos burocráticos se adaptem melhor à natureza humana. O objetivo é ver se intervenções pequenas e baratas podem modificar comportamentos, beneficiando indivíduos e a sociedade.
É uma ideia americana popularizada pelo livro "Nudge: O Empurrão Para a Escolha Certa", de Richard H. Thaler e Cass R. Sunstein. O professor Thaler é economista da Universidade de Chicago e Sunstein trabalhou no governo Obama, onde aplicou as descobertas comportamentais em políticas regulatórias, mas sem ter poder nem recursos para experimentar.
Então a ideia se enraizou no Reino Unido. O primeiro-ministro David Cameron a adotou, vendo-a não apenas como uma maneira de ajudar as pessoas, mas de o governo fazer mais gastando menos. Ele criou a Equipe de Percepções Comportamentais -ou unidade de estímulo- em 2010. Desde então, dobrou de tamanho e está prestes a se expandir.
A unidade vem induzindo as pessoas a pagar impostos no prazo, calafetar seus sótãos, inscrever-se para doação de órgãos, parar de fumar durante a gravidez e fazer doações para caridade -e economizou dezenas de milhões de libras dos contribuintes, segundo seu diretor, David Halpern. Todo funcionário público no Reino Unido hoje está sendo treinado em ciência comportamental. A unidade tem uma lista de espera de departamentos ávidos para trabalhar com ela, e outros países, da Dinamarca à Austrália, manifestaram interesse pela ideia. A Casa Branca de Obama montou uma equipe semelhante.
"Primeiro a ideia viajou para o Reino Unido e agora as lições estão voltando aos EUA", disse o professor Thaler.
No centro do "empurrão" está a crença de que as pessoas nem sempre agem em seu próprio interesse. Nós somos abalados pela ansiedade e dominados por nosso desejo de adaptação. Temos preconceitos e hábitos e podemos ser preguiçosos: diante de uma opção, é maior a probabilidade de escolhermos a opção básica, seja um toque de celular ou um plano de aposentadoria.
Os proponentes do estímulo estudam o comportamento para tentar descobrir por que as pessoas às vezes fazem más escolhas. Então eles testam pequenas mudanças no modo como as alternativas são apresentadas, para ver se as pessoas podem ser dirigidas para decisões melhores -como colocar maçãs e não chocolates no nível dos olhos nas cantinas das escolas.
Um dos maiores sucessos da unidade envolve o pagamento de impostos. A equipe de Halpern ajudou a testar diferentes cartas de lembrete para centenas de milhares de pessoas que não pagavam impostos. Uma delas tinha uma frase dizendo aos destinatários que a maioria das pessoas de sua comunidade já tinha pago os impostos. Outra dizia que a maioria das pessoas que deviam uma quantia semelhante de impostos já havia pago sua dívida.
Ambas as mensagens aumentaram a coleta de impostos, e a combinação delas foi ainda melhor. No último ano financeiro, as cartas produziram 210 milhões de libras em receitas, segundo o governo.
A ideia foi apresentada a Cameron em 2008 por seu assessor mais jovem, Rohan Silva, que tinha lido "Nudge" assim que o livro foi publicado. Poucas semanas depois de Cameron assumir o cargo, em maio de 2010, nascia a unidade de estímulo. A equipe, que hoje tem 16 membros, já fez mais de 50 experimentos.
Gyani ajudou a criar um teste inicial em que 2.000 pessoas que procuravam emprego foram divididas aleatoriamente em dois grupos: o primeiro continuou preenchendo até nove formulários e esperando a visita de um assessor de empregos. As do segundo grupo preencheram apenas dois formulários e viram o assessor imediatamente. As do segundo grupo que não tivessem encontrado trabalho dentro de oito semanas também eram convidadas a fazer o exercício de redação expressiva e um teste para identificar seus pontos fortes.
Assessores do grupo estimulado não apenas lembraram as pessoas para que elas fossem à entrevista de emprego ou atualizassem seu currículo, como também lhes perguntaram como planejavam ir à entrevista e em que hora do dia escreveriam o currículo.
"A ideia era criar um compromisso", disse Gyani.
Dos mil trabalhadores desempregados que foram estimulados, 60% estavam trabalhando novamente em 13 semanas, comparados aos 51% que não foram "empurrados". "Eu pensei: 'Puxa, mesmo que isso caia pela metade quando aumentarmos a escala, é maciço'", disse Gyani. "Poderia significar dezenas de milhares de pessoas saindo do desemprego."
O projeto hoje está sendo estendido a todo o Reino Unido.
A unidade de estímulo também assumiu a tarefa de fazer as pessoas calafetarem seus sótãos. Os subsídios generosos tiveram pouco sucesso. Halpern lembrou que o executivo-chefe de uma companhia energética lhe contara durante um jantar que as pessoas resistiam à calefação porque isso significava retirar pilhas de objetos inúteis de seus sótãos. Quando a unidade de estímulo ofereceu serviços de faxina, a porcentagem de famílias que concordavam em fazer a calefação aumentou.
"A suposição do departamento de energia era que bastava aumentar o subsídio", disse Halpern. "Na verdade, não é preciso. Quando você ajuda as pessoas a limpar os sótãos -mesmo que elas tenham de pagar pelo serviço-, há um aumento de 4,8 vezes na aceitação."
Um dos estímulos favoritos de Halpern é algo que o aeroporto de Schiphol, perto de Amsterdã, adotou nos banheiros públicos: um pequeno adesivo de uma mosca no centro do mictório melhora a pontaria dos usuários e economiza custos de limpeza para o aeroporto.
Durante uma visita recente a Downing Street, Thaler encontrou Cameron no banheiro masculino. Não havia adesivos de mosca. "Qual é o motivo?", brincou.
Os críticos dos estímulos comportamentais dizem que eles poderiam se tornar um eufemismo para a redução de serviços do governo. Eles acusam Cameron de testar o conceito de forma seletiva.
Os estímulos nunca vão substituir a política pública tradicional, disse Halpern. Parafraseando o ministro Oliver Letwin, disse: "Ninguém está propondo derrubar a lei contra assassinato e substituí-la por um empurrão".
Fonte: NYT, 17.12.13

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Votar: prazer ou obrigação?

CLÓVIS ROSSI

Voto facultativo produziu no Chile um resultado que dá pouca força política à eleita, Michelle Bachelet
As eleições de domingo no Chile são um bom motivo para reintroduzir no Brasil uma discussão, sobre voto obrigatório ou facultativo, que nunca passa dos primeiros capítulos.
No Chile, na primeira eleição presidencial com voto facultativo, foram às urnas apenas 42% dos eleitores inscritos. O resultado não deslegitima a vitória da socialista Michelle Bachelet, mas lhe confere um vigor político inferior.
Afinal, como obteve 62% dos votos, tem-se que apenas 26% dos eleitores inscritos se deram ao trabalho de sair de casa para votar nela.
Seria pouco em qualquer circunstância e torna-se ínfimo ante o grande desafio que Bachelet tem pela frente, o de reduzir a desigualdade que mancha um país tido como modelo para os adeptos do liberalismo hoje hegemônico.
Em um mundo perfeito, eu seria favorável ao voto voluntário. Parece-me ilógico obrigar o cidadão a desfrutar do direito de escolher quem ele quer que governe.
Como o mundo está longe de ser perfeito, prefiro o voto obrigatório.
Em países como Chile e Brasil, em que os problemas básicos não estão resolvidos e em que a consciência cívica não está plenamente desenvolvida, é melhor, por enquanto, obrigar o eleitor a exercer o seu direito e o seu dever.
Até entendo quem defende o voto facultativo com o argumento indesmentível de que o sufrágio obrigatório tem levado à eleição de um punhado de personagens que seria melhor esquecer (no Brasil mais que no Chile, é bom que se diga).
O problema com esse argumento é que não se fez a experiência do voto facultativo, o que torna impossível de se afirmar cientificamente que os eleitos seriam melhores.
Pelo menos em pequenas cidades e nos fundões, o voto facultativo tenderia a levar à exacerbação dos currais eleitorais.
Os "coronéis" de plantão usariam seus recursos para levar eleitores às urnas, ao passo que candidatos mais ideológicos e programáticos dependeriam do gogó para convencer eleitores a votar, esforço que se torna dramático em tempos, como os atuais, de desconfiança generalizada nos políticos.
No Chile, com todo o brilho que lhe conferem os analistas liberais e conservadores, a desconfiança é também elevada, do que dá prova o Latinobarômetro-2013: menos de 20% dos chilenos dizem que o país é governado em benefício de todos, abaixo da média latino-americana de 30%, já baixa.
Pior: só os pesquisados no Peru, no Brasil, na Costa Rica, em Honduras e no Paraguai ficam atrás dos chilenos em matéria de descrença na capacidade de os políticos governarem para a maioria.
Não é uma desconfiança gratuita: 1% da população chilena concentra um terço da riqueza do país e tem um renda per capital 40 vezes maior que o 81% mais pobre, segundo estudo da Universidade do Chile divulgado em março passado.
Com apenas 26% dos votos possíveis, Michelle Bachelet tem a obrigação de modificar essa desproporção brutal, sob pena de, na eleição seguinte, ainda menos chilenos comparecerem ao encontro com as urnas.

Coalizão heterogênea é desafio para nova presidente do Chile: Analistas temem que divisões entre partidos de base possam dificultar aprovação de propostas de Bachelet

Aliados, porém, dizem estar comprometidos com o programa de governo no primeiro encontro após eleições
LÍGIA MESQUITAENVIADA ESPECIAL A SANTIAGO
A presidente eleita do Chile, Michelle Bachelet, terá maioria no Congresso, mas resta saber se ela conseguirá construir um consenso dentro de sua heterogênea coalizão de centro-esquerda, a Nova Maioria (ex-Concertação).
A aliança agrega o Partido Socialista, de Bachelet, a Democracia Cristã, o Partido Comunista, o Partido pela Democracia, o Partido Radical Social-democrata, a Esquerda Cidadã e o Movimento Amplo Social.
Em seu primeiro dia como presidente eleita, Bachelet se reuniu ontem em Santiago com os líderes dessas legendas. No encontro, todos afirmaram que estão comprometidos com o programa de governo da futura mandatária, que inclui as propostas de reformas tributária, educacional e constitucional.
Além desses três temas, o programa de Bachelet aborda questões que são vistas de maneiras diferentes pelos partidos da coalizão, como a descriminalização do aborto em situações específicas (risco de vida para a mãe, inviabilidade do feto ou estupro) e o casamento gay.
Para o analista político Patricio Navia, professor da Universidade Diego Portales, a atitude da Democracia Cristã dentro da Nova Maioria será fundamental."As visões mais moderadas da Democracia Cristã com certeza vão se impor", diz.
"Temas como o casamento igualitário não serão um problema para a Democracia Cristã, porque não somos conservadores. Eu fui o autor do projeto da lei de divórcio", afirma à Folha o presidente do partido, Ignacio Walker.
Melissa Sepúlveda, presidente da Federação de Estudantes da Universidade do Chile, não acredita que a Democracia Cristã votará a favor da reforma educacional.
"Eles já se mostraram contra algumas medidas", afirma. "Não é porque Bachelet tem a maioria numérica que existe alguma garantia de que ela fará essa reforma."
Walker rebate a afirmação da líder estudantil. "Fomos o primeiro partido a pedir o fim do lucro na educação. Estamos comprometidos com essa reforma."
A participação do Partido Comunista no governo também gera dúvidas na Nova Maioria, já que os comunistas estão fora do Palácio de La Moneda desde a morte de Salvador Allende, em 1973.
"Será que o Partido Comunista estará comprometido com o projeto de governo? Temos dúvidas se ele terá um pé na alameda [na rua] e um no La Moneda", diz em off o líder de uma das legendas da coalizão.
O analista Navia diz que Bachelet precisará dos comunistas. "Será essencial a presença deles para ter governabilidade e conter as críticas da esquerda."
Fonte: Folha, 17.12.13.

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Nova lei da maconha no Uruguai preocupa governo brasileiro: No mês passado, Dilma expressou ao uruguaio Mujica seu receio de aumento de fluxo de pessoas na fronteira

Indagado sobre o tema, ministro da Justiça diz que 'cada país deve seguir o caminho que acredita ser justo'
DE BRASÍLIA
Apesar de evitar tratar do tema publicamente, o governo brasileiro se preocupa com os impactos da decisão sobre a maconha no Uruguai, que anteontem se tornou o primeiro país no mundo a legalizar a produção e o comércio da droga.
Dilma Rousseff tratou pessoalmente do tema com o presidente uruguaio, José Mujica, no mês passado, quando ele esteve em Brasília. Na ocasião, Dilma disse que entendia e respeitava a discussão, mas expressou receio em relação aos efeitos da liberação, em especial no Brasil.
Mujica disse que o Uruguai não será uma Amsterdã, destino do chamado turismo da "droga", e afirmou que todo tipo de controle será usado para evitar que a lei seja desvirtuada.
Apesar das promessas de Mujica, o Brasil se prepara para reforçar o controle de pessoas e bagagens, se confirmado o esperado aumento no fluxo de brasileiros ou uruguaios cruzando a fronteira.
A Polícia Federal poderá enquadrar em tráfico internacional de drogas quem tentar entrar no Brasil com qualquer quantidade de maconha.
A pena para tráfico de entorpecentes --três a dez anos de prisão-- pode ser acrescida de até seis anos caso fique constatada a "transnacionalidade do delito".
Não se acredita, entretanto, que a nova lei vá inverter as rotas do tráfico. O Paraguai deverá permanecer como o principal produtor de maconha da América Latina.
Atualmente, ele é responsável, segundo estimativas da PF, por até 95% da maconha que entra no Brasil.
Indagado se a "moda vai se espalhar", o ministro José Eduardo Cardozo (Justiça) disse que "cada país deve, de acordo com a sua realidade, seguir o caminho que acredita ser justo".
O ministro da Saúde, Alexandre Padilha, disse que a medida não deve ter nenhum impacto sobre a saúde pública brasileira.
"A lei brasileira já não criminaliza o usuário. O grande desafio que temos, no Brasil, é montar uma rede de cuidados à saúde para pessoas que sejam vítimas do uso abusivo de drogas, sobretudo o crack", afirmou.
ESPECIALISTAS
Especialistas ressaltam que a ação uruguaia é apenas uma de um conjunto de medidas adotadas na tentativa de recuperar áreas degradadas e combater o aumento da violência no país.
"Em vez de responder com caveirões, unidades agressivas de choque e robocops, eles optaram por ações de prevenção e um enfoque mais progressista em relação ao problema. Essa legalização da produção e comércio da maconha é apenas uma das estratégias", diz o sociólogo Cláudio Beato, do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública da UFMG. (NATUZA NERY, FERNANDA ODILLA, MATHEUS LEITÃO E JOHANNA NUBLAT)
Folha: 12.12.13.

Violência na Argentina (Saques) e no Brasil (Estádios): Polícia para quem precisa nos 30 anos de democracia

CLÓVIS ROSSI
Violência, muito além de Joinville
Na Argentina como no Brasil, o que se está vendo é o rompimento completo de um já precário pacto social
Certeiro comentário da senadora Norma Morandini a respeito dos saques que se seguiram às greves policiais na Argentina:
"Exatamente quando ce­le­bra­mos os 30 anos de de­mo­cra­cia em paz, afastados da brutalidade re­pres­si­va da di­ta­du­ra, é muito triste que a ci­da­da­nia só acredite na ordem dos uniformizados [os policiais]. Se um vizinho que com­pra to­das as manhãs o pão e o leite volta à noite para roubar esse comércio, (...) algo fizemos de errado como sociedade e como políticos."
Mude-se o cenário para a Arena Joinville no domingo e para os saques perpetrados após legítimas manifestações populares, e a observação continua valendo.
Não basta culpar a polícia (ou a falta dela), as autoridades esportivas ou políticas pela barbárie vista domingo. Quando grupos vão a um espetáculo e resolvem, subitamente (ou não?), sair à caça um do outro, é porque "algo fizemos de errado como sociedade".
Até porque é ilusório acreditar que, controlando a violência nos estádios, poderemos todos dormir em paz. "A violência no futebol é, em parte, decorrente da violência que existe em toda a sociedade", ensinou ontem mestre Tostão em sua coluna.
É igualmente ilusório atribuir a violência à miséria e à difícil vida de parte substancial da população brasileira (e argentina também), tese que já me cativou muito mais do que hoje. Afinal, nos últimos dez anos, a vida melhorou para um nutrido contingente de brasileiros, mas nem por isso a violência diminuiu.
Ao contrário, é espantosa a facilidade com que se mata hoje.
Suspeito que vale para o Brasil a análise que fez para a Argentina o editor-geral do jornal "Clarín", Ricardo Kirschbaum: "[Há] uma sociedade cada vez mais fraturada socialmente, na qual os laços de solidariedade se debilitaram e os códigos que regiam a relação entre as pessoas, entre os vizinhos do mesmo bairro, se perderam em favor de uma nova conduta que não reconhece os limites conhecidos".
Posto de outra forma: rompeu-se o contrato social, como admite José Manuel de la Sota, o governador da Província de Córdoba, exatamente a que foi pioneira, neste ano, na greve da polícia e nos saques que a ela se sucederam.
São avaliações que valem também para o Brasil, ponto a ponto. Joinville foi claramente um momento (mais um) em que "os códigos que regiam a relação entre as pessoas" se perderam em troca do grito de "mata,mata" que o pai de uma das vítimas contou que o filho ouvira dos bárbaros com os quais lutou.
Causas? Aqui se entra em território minado. Há as drogas que induzem a comportamentos desregrados e criam, em seu entorno, um ambiente de extrema violência. Há a impunidade que faz com que a barbárie em Joinville, como nos saques no Brasil e na Argentina, seja exercida à vista até das câmeras de TV.
Impunidade também para criminosos que atacam longe das câmeras, dado o baixo índice de crimes esclarecidos e punidos.
E há o tal contrato social que precisa ser urgentemente refeito. Tarefa para lideranças que escasseiam, se é que existem.
Fonte: Folha, 12.12.13.

Orçamento Impositivo II: Governo cede para Orçamento ser votado Após desgaste com o PMDB, Planalto costura acordo para que proposta seja apreciada pelo Congresso na terça

Executivo federal se comprometeu a manter regra do pagamento obrigatório de emendas dos parlamentares
DE BRASÍLIA
Após enfrentar desgaste na relação com o PMDB, seu principal aliado, o Palácio do Planalto recuou e costurou acordo para o Congresso tentar votar na próxima terça-feira o Orçamento de 2014.
O governo se comprometeu a não vetar uma das principais bandeiras de Henrique Eduardo Alves (RN), presidente da Câmara dos Deputados e cacique do PMDB.
Trata-se da regra inserida na LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias) que prevê o pagamento obrigatório de verbas para as obras apadrinhadas por deputados e senadores, as chamadas emendas impositivas.
Os recursos são destinados geralmente para redutos políticos dos congressistas.
O recado foi transmitido ontem pela ministra Ideli Salvatti (Relações Institucionais) ao presidente da Câmara.
Na conversa, Ideli informou ao peemedebista que a presidente Dilma assumiu o compromisso de não vetar as emendas impositivas na LDO.
O governo exige como contrapartida que a Câmara dos Deputados resgate a versão do Senado sobre a PEC (Proposta de Emenda à Constituição) que trata do tema, estabelecendo o sistema de pagamento de emendas impositivas e ainda um modelo de financiamento da saúde.
A proposta foi dividida em duas por uma comissão da Câmara, o que o governo considerou como quebra de acordo. "Este é um entendimento em benefício dessa Casa e do país", afirmou Alves.
O vice-presidente, Michel Temer, foi um dos interlocutores que viabilizou o entendimento sobre o Orçamento.
SUBIDA DE TOM
Anteontem, o presidente da Câmara fez duras críticas à articulação política do governo e afirmou que o veto criaria frustração desnecessária entre os parlamentares e abalaria a relação entre os Poderes.
Diante das dificuldades com seus aliados, o Planalto chegou a informar que já trabalha com a possibilidade de que a proposta de Orçamento da União para 2014 só seja votada no ano que vem. Sem a proposta aprovada, na prática, o governo estaria impedido apenas de patrocinar novos investimentos.
A subida de tom do governo irritou aliados que também criticaram especialmente a decisão de liberar neste ano R$10 milhões das emendas parlamentares e não R$12 milhões como pediam os congressistas.
Com o recuo, a expectativa é que a relação fique menos tensa.
    Folha: 12.12.13

Financiamento de Campanhas - Mensalão é fichinha

QUESTÕES DE ORDEM
MARCELO COELHO - coelhofsp@uol.com.br
Mensalão é fichinha
Debate no STF sobre doações de empresas a candidatos e partidos pode fazer mensalão parecer simples no futuro
Empresas podem fazer doações a candidatos? Pela legislação atual, sim. O sistema traz distorções? Com certeza.
Dos R$ 6 bilhões arrecadados nas eleições de 2010, 97% vieram de contribuições feitas por pessoas jurídicas. Pesquisas demonstram, ademais, que, quanto mais dinheiro recebe um candidato, maior sua chance de se eleger. O custo médio de um deputado federal está em R$ 1 milhão, e o de um senador é quatro vezes mais.
A exposição foi feita em menos de dez minutos, pela advogada Aline Osório, no início da sessão de ontem do Supremo Tribunal Federal.
Seria o caso de propor uma reforma política no Congresso, para diminuir ou regular os gastos eleitorais? Para outro orador da sessão de ontem, isso seria irrealista: a cobra nunca morde a mão que a alimenta.
O autor da frase, bastante expressiva mas sem maior relevância jurídica, foi Bruno Collares Alves, falando em nome do PSTU. Assim como Aline Osório, ele era um dos "amici curiae", termo que designa partes interessadas num processo, às quais é concedido o direito de fazer sustentação num tribunal.
Outros debatedores não recorreram a raciocínio tão extremado. Raimundo Aragão falou em nome do Movimento Contra a Corrupção, que agrega associações recém-saídas do sucesso obtido com a aprovação da Lei da Ficha Limpa.
Ao contrário do que aconteceu na Ficha Limpa, explicou, torna-se desnecessário propor uma nova lei para proibir doações de empresas. Basta fazer o que já está previsto na Carta de 1988.
Era também este o argumento da Ordem dos Advogados do Brasil, que propôs a ação no Supremo Tribunal. Afinal, a Constituição estabelece que todo poder emana do povo. Povo nada mais é que o conjunto dos indivíduos, dos cidadãos.
Uma empresa, uma pessoa jurídica, não é um indivíduo. Não tem o direito de votar, por exemplo. Não deveria ter, por conseguinte, o direito de financiar campanhas políticas. Que um empresário faça isso é uma coisa. Que uma pessoa jurídica faça o mesmo --isso seria inconstitucional. Revogue-se, portanto, a lei que permite esse tipo de coisa.
No campo oposto, estava a Advocacia Geral da União. A sustentação de Luís Inácio Adams foi a mais fraca e desconjuntada da tarde. O advogado-geral lembrou que, em grandes democracias como a Inglaterra e os Estados Unidos, era permitida a doação de empresas a candidatos.
Joaquim Barbosa corrigiu na hora a afirmação: isso é proibido nos EUA. O procurador-geral da República, Rodrigo Janot, e mais tarde Luiz Fux, reforçaram o ponto de Barbosa.
O advogado-geral tentou outros caminhos. Vejam, a igualdade absoluta não existe. Um empresário tem mais dinheiro a doar do que um assalariado qualquer. Partidos com mais votos têm mais tempo na televisão. Um candidato como Enéas teve ampla votação com mínimos recursos...
O presidente do STF não conseguia engolir tais raciocínios. A questão era puramente constitucional: pessoas jurídicas têm direitos políticos, como o de financiar um candidato, ou não? Barbosa apoiava a tese da OAB.
Luiz Fux, relator do processo, foi na mesma linha. Condenou o financiamento empresarial de todos os ângulos possíveis, alternando entusiasmo e técnica, empirismo prático e teoria alemã.
Nenhum ponto constitucional seria atingido pela proibição desse financiamento, acrescentou. Fux ganhou um aparte favorável de Dias Toffoli, que mal se continha ao longo do julgamento: sabemos bem a ideologia que essas empresas representam...
Tirania do poder econômico, ultraje à igualdade política, plutocratização do sistema, rabo preso dos representantes: Fux ia longe no seu voto, e não só na questão das empresas. Defendeu que também se limitem as doações de pessoas físicas e até o uso de recursos dos candidatos nas próprias campanhas.
Teori Zavascki pediu vista do processo; mas nada impediu um cansado Joaquim Barbosa de anunciar ainda ontem seu voto, apoiando e radicalizando alguns detalhes de Fux, com críticas maiores ao Congresso.
Trata-se de evitar o "toma lá, dá cá", resumiu. Se o STF seguir essa tendência, é provável que a dureza de suas decisões no mensalão acabe parecendo fichinha no futuro.

Dois ministros do STF votam contra doação eleitoral de empresas
Joaquim Barbosa e Luiz Fux se declararam a favor de ação da OAB que limita contribuições a pessoas físicas
Julgamento deve ser retomado hoje, mas Teori Zavascki já anunciou que pedirá vista do processo
DE BRASÍLIA
Sob pressão de congressistas, o Supremo Tribunal Federal começou a julgar ontem ação que pode reformular o modo como as campanhas eleitorais são feitas no Brasil.
Dois dos 11 ministros da corte votaram a favor de que as empresas, as grandes financiadoras das campanhas, sejam proibidas de doar para candidatos e partidos.
Após os votos do relator da ação, Luiz Fux, e do presidente do STF, Joaquim Barbosa, o julgamento foi suspenso e voltará à pauta do plenário hoje, quando pelo menos o ministro Dias Toffoli, que também deve considerar o financiamento inconstitucional, fará sua manifestação.
Não está claro se os outros ministros também votarão nesta quinta-feira, uma vez que o ministro Teori Zavascki já anunciou que pedirá vista do processo, o que deve arrastar a conclusão do julgamento para o ano que vem.
A ação que pretende declarar inconstitucional as doações de empresas foi proposta pela OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) e enfrenta resistência no Congresso, para quem o STF tem ultrapassado suas atribuições e assumido papel de legislador.
Na sessão, Fux disse que empresas não têm o status de cidadãs e por isso não podem participar do processo político-eleitoral: "Autorizar que pessoas jurídicas participem do processo político seria contrariar a própria essência do regime democrático".
Para o relator, a participação das empresas encarece o processo eleitoral sem lhe trazer contrapartidas, como a melhora do debate ou o aprimoramento político. Ele também considerou inconstitucional o percentual de 10% sobre o rendimento que pode ser doado por pessoas físicas e o fato de candidatos poderem usar recursos próprios sem limite rígido. No caso dessas duas modalidades de financiamento, ele defendeu que a regra atual siga valendo por 24 meses até que o Congresso crie leis que garantam o princípio da igualdade.
Barbosa disse que a participação das empresas traz influência "nefasta" na disputa. "A permissão dada às empresas para contribuírem ao financiamento é manifestamente inconstitucional por exercer influencia nefasta, perniciosa, no resultado do pleito, apta, portanto, a comprometer a normalidade e a legitimidade do processo eleitoral, bem como de comprometer seriamente a independência dos representantes".
Toffoli, que presidirá o TSE nas próximas eleições, sinalizou que deve seguir Fux e Barbosa --a expectativa é a maioria julgue as doações de empresas inconstitucionais.
Em 2010, 98% dos recursos dos dois principais candidatos à Presidência vieram de empresas.
Fonte: Folha, 12.12.13

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Vigiados, mas por quê? EUA consideram 700 mil pessoas potenciais terroristas

Por SUSAN STELLIN
Os governos cruzam águas traiçoeiras quando compilam listas de pessoas que poderiam causar mal a seus países.
Como demonstraram os temores sobre nipo-americanos e comunistas no passado, as previsões sobre o comportamento individual muitas vezes são imprecisas, os motivos para elaborar listas nem sempre são nobres e as preocupações sobre ameaças são frequentemente exageradas.
No entanto, isso não significa que os atuais esforços para identificar e rastrear terroristas sejam feitos com cautela.
A principal lista de potenciais terroristas elaborada pelo governo americano cresceu para pelo menos 700 mil pessoas, com pouco escrutínio sobre como a escolha de nomes é feita ou sobre o impacto que isso causa na vida das pessoas monitoradas.
"Não há indícios de que as agências revejam, de forma regular, seus métodos de identificação de terroristas", disse Anya Bernstein, da Escola de Direito da Universidade de Nova York em Buffalo e autora do artigo "The Hidden Costs of Terrorist Watch Lists" [Os custos ocultos das listas de vigilância de terroristas], publicado na "Buffalo Law Review".
Além disso, o governo americano se recusa a confirmar ou a negar se uma pessoa está na lista, oficialmente chamada de Banco de Dados de Filtragem de Terroristas, ou a divulgar os critérios usados para tomar as decisões -além de dizer que o banco de dados inclui "indivíduos conhecidos ou suspeitos de ter-se envolvido em conduta que constitui, em preparativo para, em ajuda de, ou relacionada a terrorismo e atividades terroristas".
Ainda menos se sabe sobre as listas de vigilância secundárias extraídas da principal, incluindo a lista de exclusão de voos (usada para evitar que pessoas embarquem em aviões), as listas de selecionados e de selecionados expandida (usadas para marcar viajantes para verificação extra nos pontos de controle dos aeroportos), o banco de dados Tecs (usado para impedir que pessoas entrem nos EUA ou deixem o país), o Sistema Consular de Previsão e Apoio (usado para rastrear pedidos de vistos) e a lista de terroristas conhecidos ou suspeitos (usada pelos órgãos policiais em batidas de rotina).
A designação de terrorista tem sido difícil de contestar legalmente -embora isso possa estar prestes a mudar. Um processo movido por uma pesquisadora que tenta retirar seu nome da lista de bloqueio de passageiros foi a julgamento em 2 de dezembro no Tribunal Distrital Federal em San Francisco, depois de quase oito anos de disputas jurídicas.
Nesse caso, Rahinah Ibrahim, estudante de doutorado na Universidade Stanford na Califórnia, foi impedida de embarcar em um voo em San Francisco em 2005, sendo algemada e detida pela polícia. Em última instância, ela recebeu autorização para voar para a Malásia, seu país natal, mas não conseguiu voltar para os EUA porque o Departamento de Estado revogou seu visto de estudante.
Segundo arquivos do tribunal, dois agentes do FBI visitaram Ibrahim uma semana antes de sua viagem e perguntaram sobre suas atividades religiosas (ela é muçulmana), sobre seu marido e o que ela saberia sobre uma organização terrorista do Sudeste Asiático.
O resumo dessa entrevista, obtido pelo advogado de Ibrahim, inclui um código que indica que a visita se relacionou a uma investigação sobre terrorismo internacional, mas não está claro se outras evidências -como e-mail ou registros telefônicos- fizeram parte desse inquérito.
O governo diz que revelar esse tipo de informação ameaçaria a segurança nacional. Em abril, o ministro da Justiça, Eric Holder Jr., confirmou ao tribunal "uma alegação formal dos privilégios secretos do Estado" nesse caso.
Em outro caso, Latif versus Holder, 13 cidadãos americanos que tiveram seu embarque negado em aviões buscam retirar seus nomes de qualquer lista de vigiados, saber os motivos pelos quais foram proibidos de embarcar e ter uma oportunidade para refutar qualquer informação desfavorável.
"As pessoas acusadas de ser combatentes inimigos em Guantánamo têm a capacidade de contestar sua detenção, por mais imperfeito que isso seja hoje", disse Hina Shamsi, advogado da União Americana de Liberdades Civis, que representa os queixosos. "Não tem sentido que pessoas que realmente não foram acusadas de nada não possam contestar sua inclusão em uma lista de monitorados".
O centro de rastreamento de terroristas, que administra a principal lista de vigilância de terroristas, não quis falar sobre seus procedimentos ou divulgar dados atuais sobre o número de cidadãos ou pessoas nas várias listas de vigilância.
O Departamento de Responsabilidade do Governo e outros órgãos levantaram preocupações sobre como as pessoas são indicadas para a lista, a precisão da informação e a eficácia dos procedimentos para retirar ou corrigir os registros.
Os viajantes têm o direito de fazer uma queixa junto ao programa de investigação de viajantes do Departamento de Segurança Interna.
No entanto, a maior parte da informação nos bancos de dados é isenta das exigências de divulgação da Lei de Privacidade, de modo que os que apresentam queixas muitas vezes recebem a resposta de que o governo não pode revelar detalhes -uma questão subjacente aos desafios hoje revistos pelos tribunais.
A professora Bernstein propõe rever essa isenção, exigir avaliações regulares das listas e examinar a precisão dos algoritmos para prever "algo tão raro e idiossincrático quanto o terrorismo".
"Quando você tem uma lista enorme de pessoas que têm probabilidade de cometer atos terroristas, é fácil pensar que o terrorismo é realmente um grande problema", disse ela, acrescentando: "Como sociedade, temos escolha sobre o que realmente consideramos problemas importantes".
Fonte: NYT
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Orçamento Impositivo I: Governo reduz verba para emendas de parlamentares

Medida pode azedar a relação do Palácio do Planalto com os congressistas
Recado foi passado ontem pelas ministras Ideli Salvatti e Miriam Berchior em reunião com líderes governistas
MÁRCIO FALCÃOGABRIELA GUERREIRODE BRASÍLIA
Após um período de aparente tranquilidade na relação com o Congresso, o governo Dilma Rousseff anunciou ontem a aliados medidas com potencial de azedar a relação neste fim de ano.
Em reunião com líderes de bancadas governistas, o Planalto avisou que, por dificuldade de caixa, vai frear a liberação de verbas para as obras apadrinhadas por deputados e senadores.
A medida foi interpretada por eles como rompimento de acordo firmado após os protestos de rua de junho.
O governo ainda indicou que deve vetar uma das principais bandeiras de Henrique Eduardo Alves (RN), presidente da Câmara e cacique do PMDB, o segundo maior partido da coalizão dilmista.
Trata-se da regra inserida na Lei de Diretrizes Orçamentárias que prevê o pagamento obrigatório de parte dessas verbas.
As chamadas emendas parlamentares representam, em grande parte, obras incluídas por deputados e senadores no Orçamento da União, geralmente direcionando dinheiro para seus redutos eleitorais.
O recado foi transmitido pelas ministras Ideli Salvatti (Relações Institucionais) e Miriam Belchior (Planejamento) a líderes das bancadas do PT, PMDB, PP e Pros.
Segundo os deputados, o governo avisou que já utilizou o dinheiro do caixa reservado para as emendas e que só serão pagos R$ 10 milhões dos R$ 12 milhões prometidos para os mais de 400 parlamentares da base aliada.
O acerto ocorreu no início do segundo semestre, quando Dilma enfrentava ameaça de rebelião generalizada no Congresso, entre elas a de que vetos seus a projetos aprovados pelo Legislativo fossem derrubados.
Os números da execução orçamentária mostram que o governo acelerou a liberação de verbas para emendas parlamentares a partir de agosto. Mas, até agora, o aumento das autorizações não se traduziu em alta dos desembolsos efetivos.
A maioria das emendas ainda está na fase do empenho --a primeira etapa do gasto orçamentário, quando os recursos são formalmente reservados; o pagamento, porém, pode demorar anos ou até ser cancelado posteriormente.
Para medir essa evolução, a Folha consultou as 20 iniciativas orçamentárias que mais concentram emendas. Até novembro, elas contabilizavam empenhos de R$ 6,3 bilhões e pagamentos de R$ 2,8 bilhões.
Para o líder do bloco PP e Pros, Eduardo da Fonte (PE), o congelamento dos recursos demonstra que está faltando "sintonia" entre governo e sua base de apoio.
"Não era para estar tendo esse tipo de problema com a base. A culpa não é da base, é da falta de sintonia do processo político. Não está tendo sintonia", afirmou.
Após o anúncio, a bancada do PMDB barrou ontem as votações da Comissão Mista de Orçamento da proposta orçamentária de 2014, que corre o risco de não se aprovada neste ano.
"Não vamos fazer papel de otários. Precisamos de confirmação clara do governo", disse Danilo Forte (PMDB-CE), relator da Lei de Diretrizes Orçamentárias, se referindo à intenção do governo de vetar a obrigação de pagamento de um percentual mínimo das emendas parlamentares.
O líder do PT na Câmara, José Guimarães (CE), negou rompimento de acordo por parte do Planalto, afirmando que o governo bate recorde de liberação de emendas. "É um recorde. A média nunca passou de R$ 8 milhões."

Vitória da Pirro - Trincheiras na Venezuela

No primeiro teste eleitoral do presidente Nicolás Maduro, os pleitos municipais na Venezuela, realizados no domingo, evidenciaram, mais uma vez, um país dividido.
Em eleição definida como "plebiscitária" pela própria oposição, o PSUV (Partido Socialista Unido da Venezuela) e outras siglas governistas conquistaram um número bem maior de prefeituras e obtiveram 49% do total de votos, contra 43% da MUD (Mesa de União Democrática) e seus aliados.
Foi o que bastou para Maduro celebrar o resultado e sacar, da cartilha chavista, declarações agressivas contra seu principal adversário, Henrique Capriles. Afirmou que o líder oposicionista é "fascista e prepotente" e o exortou a deixar a política, como se as urnas houvessem dado razão para tanto.
Longe de ser o caso. A oposição voltou a vencer em quatro dos cinco municípios que formam Caracas, além de seu distrito metropolitano. Manteve Maracaibo e Valencia, segunda e terceira maiores cidades do país, e tomou dos chavistas a prefeitura de Barinas, capital do Estado natal de Hugo Chávez.
Num país conturbado como a Venezuela, é difícil precisar quem se saiu melhor. Com o desabastecimento de alimentos e produtos de primeira necessidade, a inflação galopante (já perto de 60% ao ano), a falta de dólares na praça e a insegurança crescente, uma oposição mais forte talvez tivesse amealhado mais votos.
No entanto, são conhecidos os métodos chavistas. Os meios de comunicação são praticamente monopólio do governo, e eleitores têm fundados motivos para temer represálias caso votem na oposição.
Maduro, além disso, adotou medidas tão irresponsáveis quanto populistas a fim de obter sucesso eleitoral. Ordenou, mês passado, a redução do preço de eletrodomésticos em até 50%. A ação gerou uma onda de consumo e teve impacto na campanha, chamado por analistas de "efeito TV de plasma".
Vale, portanto, o mesmo raciocínio aplicado à oposição: não seria natural esperar votação mais expressiva dos governistas?
Do ponto de vista eleitoral, o copo está meio cheio, meio vazio. Já a situação da Venezuela não pode ser relativizada da mesma maneira. Entrincheirados em seus redutos, governo e oposição recusam-se a estabelecer um diálogo saudável. Cantam vitórias de pirro num país cada vez mais em frangalhos.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Deputados franceses aprovam multa para cliente de prostituição: Medida é parte de pacote para coibir a prática; projeto agora segue ao Senado antes de virar lei

Proposta tem sido alvo de protestos pelo país; outro ponto é a criação de fundo de apoio a quem deixa prostituição
LEANDRO COLONDE LONDRES
O Parlamento francês deu ontem um primeiro e importante passo para punir quem for flagrado pagando por serviços de sexo no país.
Polêmica, a proposta estabelece uma multa de € 1.500 (R$ 4.800) para os clientes de prostituição. O valor sobe para € 3.750 (R$ 11.800) se a pessoa for reincidente.
A votação ocorreu na Assembleia Nacional (Câmara baixa do Legislativo), com 268 votos a favor, 138 contrários e 79 abstenções.
Para entrar em vigor, a medida que criminaliza a clientela do sexo precisa agora passar pelo Senado. Ontem mesmo, um grupo de 20 senadores pediu um exame rápido do texto na Casa para que seja aprovado. Os adversários da proposta, porém, prometem criar dificuldades.
A nova lei não saiu do gabinete do presidente socialista François Hollande, mas a ministra dos Direitos às Mulheres, Najat Vallaud-Belkacem, está entre seus principais defensores.
Os apoiadores da nova lei alegam que o foco principal da proposta é acabar com o tráfico de mulheres para se prostituírem na França.
Estima-se que 80% dos que se prostituem hoje na França (entre 20 mil e 40 mil pessoas) são estrangeiros, muitos deles traficados por mafiosos.
A multa aos clientes, dizem os defensores da punição, desestimularia o mercado de sexo no país, afetando as máfias que controlam as redes. E ainda incentivaria as prostitutas a largarem esse tipo de trabalho, legal na França.
Por outro lado, críticos da lei, inclusive do governo, como o ministro do Interior, Manuel Valls, têm declarado que o texto será na prática de difícil aplicação. Além disso, argumentam que fere a liberdade dos cidadãos que querem pagar por sexo.
Sem falar no risco que pode levar às prostitutas, sendo que muitas já foram às ruas contra a ideia que certamente atingirá seu trabalho e a relação com os clientes.
A lei em discussão na França é inspirada na Suécia, que tem legislação parecida desde 1999. A medida teria diminuído a prostituição no país em 50%. No Reino Unido, a prática não é proibida, e a punição de quem paga por sexo encontra resistências.
As autoridades francesas prometem criar um fundo, estimado em € 20 milhões (R$ 64 milhões), para ajudar as prostitutas que deixarem esse trabalho e, ao mesmo tempo, evitar a entrada de mais pessoas vulneráveis ao mercado. A fonte de recursos seria o próprio Estado, incluindo a verba das multas pagas pelos clientes.
O texto aprovado ontem em Paris também tenta coibir o mercado do sexo pela internet. Diz, por exemplo, que sites hospedados no exterior que violem a legislação local devem ser bloqueados para acesso na França ou ser punidos dentro do país.
Estão querendo criminalizar o mais honesto dos desejos
XICO SÁCOLUNISTA DA FOLHA
Multar um homem porque procura uma prostituta, seja no bairro do Pari, em SP, seja em Paris, França, é criminalizar o mais honesto e familiar dos desejos. É rasgar o contrato social avulso mais sólido da humanidade --o que não carece de cartório ou carimbos-- desde que Jean-Jacques Rousseau (1712-78) se entendeu por gente.
Parte-se do pressuposto de que a prostituta da terra do cancan é violentada e a política francesa tem que protegê-la, mesmo que ela não queira. As manifestações do Sindicato do Trabalho do Sexo na praça Pigalle, símbolo internacional da prostituição parisiense, deixaram o discurso explícito.
O temor das sindicalistas é que as meninas tenham que trabalhar escondidas em lugares isolados, vulneráveis ao assombro e ao perigo da clandestinidade. Porque não se acaba, jamé, com o amor honestamente remunerado. Nem por lei nem por decreto. Todo amor é pago. Em cédulas ou em sofrimento moral.
Ninguém sabe ao certo onde nasceu a prostituição, o tal do ofício mais antigo do mundo. Foi a França, porém, que deu todo o glamour e a reinventou quase como arte do século 19 por diante.
A história se repete como grossa ironia para gente fina e correta.
Da poesia de Charles Baudelaire, o esquisitão que inventou a modernidade, aos romances da fase parisiense do americano Henry Miller, a prostituta virou a grande metáfora de Paris --a ideia de cidade a ser penetrada pelo homem que flana, seja um local ou um estrangeiro.
A prostituta está para Paris como Nossa Senhora e as meninas dos milagres para Fátima. A capital do amor, sincero ou por dinheiro, jamais será a mesma.
Logo a França que engambelou o mundo com seus caôs, com o simbolismo superior, agora se arvora a provinciana santa do pau oco.
Sinal do fim dos tempos, evidentemente. A aldeia gaulesa, porém, resiste. No Pari ou em Paris.

    Fonte: Folha, 05.12.13


Nova lei de Licitações - No reino da trapaça

JANIO DE FREITAS
A corrupção que mina os poderes públicos não decorre da carência de uma lei que substitua a atual
Mais um capítulo do que se chama, vulgarmente, "a luta contra a corrupção". É esperada para hoje a entrega do projeto final para a nova Lei de Licitações. Um catatau espalhado pela senadora Kátia Abreu, como relatora, em quase 180 artigos. Muito mais tamanho do que promessa.
A corrupção grossa, que mina os poderes públicos no país todo, não decorre da carência de uma lei que substitua a atual, nascida há 20 anos sob impulso, em grande parte, da antecipação de resultados, aqui na Folha, em numerosas licitações fraudadas. A lei 8.666 está longe de ser perfeita, mas não é este o motivo de concorrência pública e trapaça serem sinônimos no Brasil.
Enquanto for possível, por exemplo, os governos, que os tribunais de contas e os ministérios públicos se curvem, seja lá por que tipo de empurrão for, aos truques no editais e nas condições específicas de licitações, as fraudes continuarão colossais. E impunes.
Enquanto for possível, como há pouco na concorrência pelo Galeão, que um edital inclua restrições a determinados concorrentes, com arrazoados falsamente técnicos, a falha não é de nenhuma lei. Neste exemplo, tanto o truque foi percebido em tempo que a Casa Civil da Presidência chegou a exigir da Secretaria de Aviação Civil que o eliminasse. Tanto o truque por percebido em tempo que o Tribunal de Contas da União chegou a exigir da SAC que o eliminasse. A dupla exigência só poderia ser por evidência do caráter restritivo e direcionador do edital. Mas o item foi reposto, sob silêncio da Casa Civil e apoio do TCU.
A culpa foi da lei?
Feito o tal leilão licitatório, a Procuradoria-Geral da República questionou o limite de 15% de participação, nos respectivos consórcios, imposto a dois ou três concorrentes que poderiam ameaçar a prevista "vitória" da Odebrecht? Não houve nem sequer a curiosidade sobre a origem dos 15, e não 17, ou 23%, ou lá quanto fosse. Como se também o Ministério Público soubesse, ou deduzisse logo, que 15% de participação eram o percentual suficiente para limitar as ofertas de determinados competidores. Nenhuma sindicância, nenhuma investigação, nenhum inquérito, nenhum processo, portanto. A culpa é da lei?
O caso do metrô e dos trens paulistas é outro bom exemplo. Não bastando a ficção de cartel de empresas sem a percepção governamental, a falta de resposta do Ministério Público Federal aos investigadores suíços, que detectaram a corrupção no governo de São Paulo, é um indicativo claro do que se passa por fora da lei. Os suíços não mandaram ao inquérito do procurador Rodrigo de Grandis uma cartinha que o destinatário, distraído, pôs em arquivo errado, como disse. Foram ao menos dez ofícios, não respondidos pelo procurador do inquérito por três anos ou mais.
A culpa foi da lei?
As informações sobre o projeto de nova lei expõem tal quantidade de pormenores e pretensas sutilezas que, no final, tendem a proporcionar mais atalhos do que bloqueio. Lei de Licitações não precisa de muita complicação. A rigor, bastaria que as licitações só fossem entregues aos cuidados de gente honesta. Mas aí já é pedir demais.
Bem, soubemos anteontem que o Brasil caiu três posições na lista da corrupção, mas ainda na zona intermediária. A ONG Transparência Internacional, pelo visto, não sabe de nada. Daí esta injustiça. Com vários dos países postos abaixo do Brasil.
Fonte: Folha, 05.12.13.

Tutela nunca mais: Autodeclaração é a maior conquista recente dos indígenas, mas eles são vistos ainda como entraves para o progresso

Clarice Cohn

1/4/2013
  • polícia cerca o antigo Museu do Índio, no Rio de Janeiro, em meio à polêmica “modernização” da região para a Copa do Mundo da Fifa, em 2014: permanecia a visão dos índios como empecilho ao desenvolvimento. (Agência Brasil / Foto Tânia Rego)
    polícia cerca o antigo Museu do Índio, no Rio de Janeiro, em meio à polêmica “modernização” da região para a Copa do Mundo da Fifa, em 2014: permanecia a visão dos índios como empecilho ao desenvolvimento. (Agência Brasil / Foto Tânia Rego)
    Os índios brasileiros não verão a chegada do século XXI. Assim previa o antropólogo Darcy Ribeiro, enquanto escrevia Os índios e a civilização (1970). A profecia do indigenista não se concretizou. Ao contrário: é crescente a presença demográfica e política dos povos indígenas brasileiros. O que teria acontecido?

    Não foi um erro de Darcy. Em sua obra, ele fez uso das mais extensas informações estatísticas e demográficas disponíveis à época, tiradas do Serviço de Proteção dos Índios (SPI), onde trabalhava, e utilizou um moderno arsenal interpretativo para avaliar a situação. O que mudou de lá para cá foram as garantias legais que protegem esses povos, e o modo como se pensa e se reconhece hoje a própria condição indígena.
    Na década de 1950, o Estado brasileiro via o índio como alvo de uma inevitável e gradativa integração à sociedade nacional. Desde o Marechal Rondon e a criação do SPI, em1910, estabeleceu-se que o papel do governo seria tornar essa marcha para a civilização a mais indolor possível. Criaram-se Frentes de Atração e Pacificação, postos indígenas nas aldeias e todo um aparato institucional para que o Estado pudesse tutelar o índio. Os indigenistas funcionários do SPI (depois Funai) deveriam garantir que essa transição se desse de modo mediado e sem violência. Ao fim, ele se tornaria um índio integrado, indistinto no meio dos demais brasileiros.
    A própria ideia de tutela é uma continuidade histórica, uma resposta à difícil pergunta de qual deve ser o status dos primeiros habitantes das terras brasileiras. Trata-se de cidadãos de segunda classe, condição semelhante à dos órfãos no século XIX: ambos necessitam de um responsável perante a lei. O Estado tutor é aquele que decide pelos índios e, sob pretexto de cuidar deles, os mantém sob controle. Aquele era também o tempo em que se começava a pôr em prática a ideia de territórios indígenas, nos quais poderiam dar continuidade a seus modos de vida sob a proteção (ou o controle) do Estado. Era este também responsável por definir quem é índio ou não.
    A mudança mais importante nesse quadro foi a Constituição de 1988, que reconhece o direito dos índios às suas terras e à cidadania plena. Esse avanço jurídico só pôde ocorrer por conta da mobilização indígena e de sua atuação junto a aliados na Assembleia Constituinte. Imagens da época mostram a presença maciça de representantes indígenas acompanhando os debates e a votação da nova Constituição.
    O direito a terra, reconhecido como originário, evita um antigo dilema dos índios: tendo sido muitos deles obrigados, pela colonização, a se embrenharem cada vez mais para o interior, nem sempre era fácil comprovar sua ocupação histórica e tradicional. Agora se deixa de procurar vestígios da ocupação milenar para se estudar seu território atual, designando-lhes uma porção suficiente para sua sobrevivência física e cultural. “Há muita terra para pouco índio”, dizem os críticos. Ou, mais grave: “Eles estão tomando conta do território nacional”. A primeira acusação não merece crédito, em um país de latifundiários. Quanto à segunda, vale lembrar algo que muitas vezes é omitido: os territórios indígenas demarcados pelo Estado brasileiro são terras alienáveis da União, cedidas aos índios em regime de usufruto, ou seja, eles não têm a posse das terras: ganham o direito de nelas residir e fazer uso das riquezas do solo e das águas para viver.
    Incorporados aos sistemas nacionais de educação escolar e saúde, os índios passaram a compartilhar direitos universais de todos os cidadãos. Têm também garantido o direito de que estes serviços respeitem suas culturas e organizações sociais e políticas. A educação indígena é regulamentada por diversas legislações, a começar pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB). Garante-se o direito ao ensino bilíngue, aos próprios processos de ensino e aprendizagem, à cultura e aos conhecimentos indígenas, além de poderem desenhar seus próprios currículos e rotinas escolares com gestão indígena e professores indígenas. Na prática, em sistemas de ensino engessados, isso nem sempre é tão fácil. Mas os direitos existem e demarcam as políticas.
    Em linhas gerais, o mesmo vale para a saúde. Antes atendidos por um serviço da Funai, os índios agora são integrados ao Sistema Único de Saúde (SUS). Como a educação escolar indígena, em muito se ganha no respeito às culturas e às práticas indígenas. Da mesma forma, a aplicação desses princípios é um desafio, assim como a formação e a contratação de pessoal especializado e a operação do sistema.
    Mesmo com tantas conquistas, diversas violações aos direitos indígenas permanecem. A começar pelo direito a terra. Quando promulgada a Constituição, o Brasil teria cinco anos para demarcar todas as terras indígenas. Até hoje isso não aconteceu. E muitas terras demarcadas se transformam em uma espécie de confinamento – em especial, as áreas devassadas e ocupadas pela monocultura.
    Permanece a visão de que os índios são um empecilho ao desenvolvimento nacional. Suas terras têm sido cada vez mais ameaçadas por projetos de criação de hidrelétricas, pela construção e pelo asfaltamento de estradas que cruzam suas terras, por projetos de mineração. A hidrelétrica de Belo Monte é um caso exemplar entre tantos outros, em praticamente todos os rios amazônicos. Nisso, parece que a história se repete. Darcy dizia que os índios são atingidos por algumas frentes de expansão e colonização do território: a extrativista, a agrícola e a pecuária. Entre hidrelétricas, projetos de mineração, fazendas de gado e grandes plantações de monocultura, o Brasil está sacrificando sua diversidade ecológica, biológica, social e cultural. E os índios, frequentemente, são vistos como os bandidos desta história.
    Ao longo do tempo, foram superadas as dificuldades em reconhecer sua humanidade, sua liberdade (direito a não escravização) e sua capacidade (direito a não serem tutelados). Resta, hoje, a questão das identidades étnicas.
    A diversidade étnica baseia-se no autorreconhecimento e na autoidentificação. É índio aquele que se reconhece como tal, e é reconhecido por uma comunidade indígena como seu membro. Assim, evita-se o arbítrio de ter um terceiro definindo a “indianidade” de qualquer pessoa – porque se estes, como foram a Funai ou o SPI por tanto tempo, podem afirmar a identidade indígena, podem também, com frequência e de modo arbitrário, negá-la. O Brasil ratificou em 2000 a Convenção 169 sobre Povos Indígenas e Tribais da Organização Internacional do Trabalho (OIT), segundo a qual a identidade dos povos indígenas só pode ser autodeclarada – e não mais atribuída. Por isso, não há critérios fixos para definir essa identidade.
    Assistimos ao que parece ser o ressurgimento de grupos indígenas. Isto se dá porque comunidades que tiveram que praticar sua diversidade cultural e étnica em silêncio e às escondidas finalmente podem vir a público, dadas as garantias legais. Por muito tempo, ser índio no Brasil significou ser reduzido às missões, escravizado, ser alvo de discriminação e até de chacinas. Diversos povos foram obrigados a abrir mão de suas línguas e de muitos costumes que eram importantes para eles. Voltam agora a afirmar sua diferença, a ver reconhecida sua identidade e a recuperar muito do que perderam.
    Mas a condição de indígena só faz sentido em contraponto ao Estado nacional. Os índios são muito diversos entre si, em comum eles têm sua diferença em relação aos não indígenas. Assim, hoje todos se descobrem parte de algo que é maior do que suas identidades particulares: sua condição indígena. Dos yanomamis embrenhados na selva aos kayapós emplumados e aos indígenas do Nordeste que perderam suas línguas, todos igualmente assumem esta condição.
    Não vale para eles acusações de artificialidade: não há nada que defina um índio, a não ser seu reconhecimento e o de seus pares de que ele o é. E esta é uma das maiores conquistas do Brasil contemporâneo, de que todos temos que nos orgulhar.
     Clarice Cohn é antropóloga, professora da Universidade Federal de São Carlos e autora da tese  “Relações de Diferença no Brasil Central: os Mebengokré e seus Outros” (USP, 2006)
     Saiba mais - Bibliografia
    CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. História dos índios no Brasil. 2. ed. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 1998
    OLIVEIRA FILHO, João Pacheco (org.) A viagem da volta: etnicidade, política e reelaboraçâo cultural no Nordeste indígena. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria. 1999.
    Internet
     Povos Indígenas no Brasil. http://pib.socioambiental.org/pt