quarta-feira, 16 de julho de 2014

Vange Leonel admirava o masculino, sacrilégio para certas correntes

Morta na segunda-feira (14), ativista e cantora escolheu a contracorrente

ELA GOSTAVA DE SE PENSAR FORA DOS ESQUEMAS CONSAGRADOS, INCLUSIVE NA LUTA PELOS DIREITOS FEMININOS
JOÃO SILVÉRIO TREVISANESPECIAL PARA A FOLHA
A Vange Leonel que conheci muito jovem, ainda nos tempos do grupo Somos, era admirável por seu senso de humor e inteligência, assim como pelo desejo de dialogar com seu tempo.
Casada com Cilmara Bedaque durante muitos anos, Vange era afável e inquieta ao pesquisar o que poderia constituir uma cultura lésbica.
Ela sempre manteve um olhar acurado e sofisticado sobre o lesbianismo enquanto história, estilo de vida e visão de mundo.
Tinha admiração legítima por lésbicas em tempos pioneiros, que levaram até o limite o seu desejo e sua liberdade, como as artistas da Academia de Mulheres de Natalie Barney, na Paris dos anos 1920. Escreveu uma linda peça sobre o grupo, traduziu e fez indicações editoriais sobre essas escritoras, especialmente a negligenciada Djuna Barnes, sua grande paixão.
Vange era uma lésbica que amava amar as mulheres. E que gostava muito do masculino. Vestia-se com botas lindas, coletes, correntes e roupas pouco indicadas a cocotas. Para isso não precisava botar pose de machona, pois sabia a diferença entre o macho, o machão e, mais ainda, o machismo.
Vange tinha legítima admiração pelo masculino, que lhe parecia cheio de encantos à sua disposição enquanto lésbica. Pretendia trazer ao seu feminino aquisições do masculino. "Por que não?", perguntava. Isso podia ser considerado sacrílego para certas correntes da militância lésbica e feminista que, dentro e fora do Brasil, propugnaram o separatismo de gêneros.
Vange gostava de se pensar fora dos esquemas consagrados, inclusive na luta pelos direitos femininos. Lembro de uma vez em que tiramos uma foto juntos e vestimos roupas masculinas propositalmente semelhantes. Sua botina, de estilo S&M, me encantou, e ela até me indicou onde comprar.
Era um prazer encontrar Vange (gostaria que tivessem sido mais vezes) porque, além do carinho mútuo, ela sempre me instigava intelectualmente.
Não que estivesse preocupada em ser uma "intelectual" do lesbianismo. Simplesmente amava ser o que era. Não se preocupava em seguir o mainstream, nem integrar-se a grupinhos com tendências X ou Y.
Ela preferia estar na contracorrente, longe de qualquer posicionamento dogmático. A delícia de Vange era flanar nas ondas atrevidas do seu desejo. O que me leva a pensar como ela se aproximava das posições heréticas de um Pier Paolo Pasolini.
É uma pena ficarmos privados do sorriso iluminado de Vange Leonel. João Silvério Trevisan é escritor, cineasta, ativista e pesquisador. Folha, 16.07.2014
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PARLAMENTO BRITÂNICO APROVA LEI DE REFORMA DA CÂMARA DOS LORDES

16 de julho de 2014, 08:05h -  Por 
A crise da legitimidade parlamentar é praticamente universal. A democracia representativa é uma das grandes conquistas da civilização ocidental e sua evolução pode ser associada a alguns marcos históricos, nos quais se deu a afirmação da aristocracia e da burguesia sobre o poder centralizado na figura do monarca. São exemplos disso os episódios que permitiram a aprovação da Magna Charta de 1215 e do Bill of Rights de 1689. Quanto a este último documento, é de ser lembrado que sua aprovação pelo rei Guilherme III e pela rainha Maria decorreu do sucesso da Revolução Gloriosa de 1688-1689, que destronou o rei católico Jaime II, da dinastia escocesa dos Stuart.

No século XVIII, a Revolução em França, de 1789, surgiu com idênticos propósitos aos da revolução inglesa de 1688-1689. Uma de suas fontes de inspiração foi a Revolução Americana de 1776, que aprovou uma constituição presidencialista (uma cópia do modelo britânico então existente, com a diferença de se ter um rei eleito, o presidente dos Estados Unidos), mas que também conferiu enorme importância ao Congresso. A experiência francesa é um excelente paralelo ao que ocorreu no Reino Unido, quase 100 anos antes, e sua leitura metafórica está muito bem posta no clássico de Charles Dickens, A tale of two cities (Um conto de duas cidades), de 1859. O centro da metáfora dickensoniana está em que os aristocratas britânicos uniram-se à burguesia para destronar um rei impopular, ao passo em que os franceses não souberam transformar o falido modelo absolutista e terminaram por lançar a nação em um banho de sangue.
Nos séculos XIX e XX, a participação popular no processo político-representativo tornou-se crescente e foi alimentada por outras revoluções, especificamente a Revolução Industrial e a Revolução Russa de 1917. Os britânicos, uma vez mais, souberam antecipar-se às exigências históricas e realizar reformas suaves em seu sistema político. Sob a liderança de políticos conservadores e liberais, como Benjamin Disraeli, 1o Conde de Beaconsfield (1804-1881), David Lloyd George, 1° Conde Lloyd George de Dwyfor (1863-1945), e Winston Spencer Churchill (1874-1965), o único dos três com ancestralidade nobre desde o século XVII, aprovaram-se leis que ampliaram o direito ao voto aos membros das classes trabalhadoras e que reformaram o sistema eleitoral, a fim de eliminar práticas espúrias como distritos eleitorais fantasmas (os famosos “burgos podres”) e a compra de votos.
O processo britânico de democratização radicalizou-se durante as duas Grandes Guerras do século XX. Um exemplo disso está em que Lloyd George e Winston Churchill conseguiram aprovar o Parliament Act 1911, que retirou da Câmara dos Lordes o poder de veto em matéria orçamentária, não sem antes ter ocorrido a famosa crise constitucional de 1910, na qual o Gabinete Liberal ameaçou criar 400 novos pares do Reino para a Câmara dos Lordes e obter a aprovação da lei orçamentária com uma nova maioria naquela casa parlamentar. Não é sem causa que alguns historiadores atribuem a vitória britânica em ambas as guerras à superioridade de seu regime político sobre os arcaicos modelos monárquicos das potências centrais — Alemanha e Áustria-Hungria. O fim da era czarista na Rússia, destruída pela Revolução de Outubro, é também atribuído ao anacronismo de suas instituições, dado que os russos começavam a experimentar um enorme crescimento industrial no início do século XX.
Essa radicalização democrática chegou ao século XX. No entanto, a hipercomplexidade da sociedade contemporânea revelou o esgotamento do modelo parlamentar clássico, que hoje tem de conviver com diversos e contraditórios fenômenos, que ora solapam sua legitimidade popular, ora põem em xeque a legitimidade moral desse modelo que atravessou os últimos séculos e conseguiu sobreviver a enormes desastres históricos. Algumas dessas contradições podem ser inventariadas:
a) A maior democratização do processo eleitoral trouxe para os parlamentos —em seus diferentes níveis — os representantes de setores sociais excluídos, mas também permitiu que muitos vereadores, deputados e senadores fossem eleitos, com votações estrondosas, graças a seu exotismo ou a duvidosos méritos em certas atividades.
b) Generalizou-se o alheamento do Poder Legislativo de profissionais liberais bem-sucedidos, servidores públicos qualificados, professores, médicos e outros integrantes da “classe média”. Os elevados custos de se participar das eleições e o recrudescimento de métodos sujos antes, durante e depois do processo eleitoral tornaram bem pouco atrativo o Parlamento para aquelas personagens, que, durante boa parte do século XX, ocuparam posições de protagonismo nas casas legislativas.
c) A perda de massa crítica nos parlamentos, especialmente nas câmaras altas, que eram responsáveis pela estabilização do processo legislativo, deslocou o cenário das decisões políticas fundamentais para a cúpula do Poder Judiciário, de modo específico o tribunal constitucional. O “protagonismo judiciário-constitucional relutante” é sentido não apenas no Brasil, mas em países tão diferentes como a Tailândia, a Turquia e o Egito, estes últimos em uma fase histórica de disputa (ou de busca de equilíbrio) entre os militares, o Parlamento e o Tribunal Constitucional.
d) A criminalização da política avança a passos largos e, para além da retirada de cena dos antigos líderes intelectuais da cena parlamentar, identifica-se agora a discreta saída dos capitalistas dos congressos. Evidentemente que se continuará com o ingresso sazonal de alguns líderes empresariais, que buscam um reconhecimento social de um mandato para seu êxito nos negócios privados. No entanto, os riscos para a reputação desses indivíduos, decorrente do processo eleitoral, e a perda de relevância decisória dos parlamentos têm atuado para que esse fenômeno se manifeste e não apenas no Brasil.
Um dos símbolos mais evidentes desse trágico processo de degradação da mais importante das instituições democráticas, o Parlamento, pode ser identificado na pátria da democracia representativa, o Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte.
Na coluna de 15 de agosto de 2012, intitulada A reforma da Câmara dos Lordes chega ao seu clímax, informou-se que o primeiro-ministro David Cameron apresentou naquele ano um projeto de reforma da Câmara Alta do Parlamento britânico. Na ocasião, expôs-se, de modo geral, a crise na qual estava imersa a House of Lords, que se submeteu a uma profunda alteração durante o governo trabalhista de Tony Blair.
O projeto, apresentado em junho de 2012, transformou-se em lei aos 14 de maio de 2014. E é sobre seus principais aspectos de que se cuidará agora.
A nova lei, intitulada de House of Lords Reform Act 20141, aplica-se à Inglaterra, ao País de Gales, à Escócia e à Irlanda do Norte (seção 7, item 4), embora suas três primeiras seções, que tratam da renúncia, do não comparecimento e da condenação por serious offence2, terão vacatio de três meses, contados de 14 de maio de 2014.
House of Lords Reform Act 2014 introduziu medidas inéditas no regime parlamentar britânico, no que se refere ao modo como são tratados os pares do reino que integram a câmara alta.
A primeira inovação está em se permitir a aposentadoria ou a renúncia de um lord (seção 1), o que era tido como algo impossível em termos constitucionais. A renúncia é irretratável e não terá efeitos retroativos, devendo ser comunicada ao Secretário do Parlamento.
Na seção 2, encontram-se as normas para o não comparecimento dos lords às sessões parlamentares. O membro da Câmara dos Lordes, que é um par do Reino e que não compareça em 1 sessão, deixará de integrar a casa no início da sessão seguintes (item 1). Essa regra só terá aplicação se for certificada a ausência pelo Lord Speaker, com bae nos registros oficiais da casa, e se o par não tiver obtido licença para se ausentar, nos termos do regimento da Câmara dos Lordes. É possível também relevar a aplicação da pena se a Câmara entender que o par encontra-se justificado por “circunstâncias especiais”, além de outras hipóteses menos relevantes.
A seção 3 prevê a hipótese de condenação do lord por serious offence (item 1). Para fins disciplinares, essa condenação só terá efeito no Parlamento se: a) o Lord Speaker certificar que a pessoa, na condição de membro da Câmara dos Lordes, foi condenado criminalmente e que a ordem judicial determinar a prisão ou a custódia por tempo indeterminado ou por mais de um ano (item 2). É irrelevante para os fins do item 2, se o crime for cometido por alguém que já é membro da Câmara dos Lordes e se a ordem judicial ou seus efeitos ocorrem no Reino Unido ou em outro lugar, desde que a casa alta entenda que seja possível aplicar o item 1 a esse tipo de condenação.
A reforma aprovada em 2014 é uma resposta “possível” a uma demanda por uma mudança substancial no Parlamento britânico. Há defensores de soluções mais radicais como a pura e simples extinção da Câmara Alta, como tem ocorrido em diversos países do mundo, ou de sua transformação em um Senado, com representantes eleitos e não mais com membros vitalícios.
Infelizmente, escândalos como a “venda” de títulos de nobreza e de vagas na Câmara dos Lordes, durante a administração do primeiro-ministro trabalhista Tony Blair, e, mais recentemente, o envolvimento de Lord Hanningfield em fraudes para obtenção indevida de ressarcimento de despesas e diárias têm minado a credibilidade da House of Lords. O exemplo do barão Hanningfield é bem característico da triste realidade da “moderna” Câmara dos Lordes: nascido em 1940, Paul Edward Winston fez carreira política como representante dos jovens agricultores e avançou nas fileiras do Partido Conservador levantando a bandeira da autonomia dos governos locais. Em 1998, ele foi nobilitado como barão e tornou-se membro da Câmara Alta. Em 2009, Lord HanningfieldLord Taylor of Warwick (filho de imigrantes jamaicanos e indicado pelo Partido Trabalhista) e os deputados trabalhistas Elliot Morley, David Chaytor e Jim Devine foram acusados criminalmente no “Escândalo das Despesas Parlamentares”.
Um paradoxo nessa crise é que a origem da maior parte dos “lordes modernos” é socialmente idêntica: pessoas oriundas de classes sociais menos favorecidas. Sendo certo também que é comprovado estatisticamente que a atual composição da Câmara Alta é a mais plural e diversificada de entre as instituições parlamentares do Reino Unido. Há mais representantes de minorias, imigrantes e de pessoas com necessidades especiais do que em qualquer outra casa parlamentar democraticamente eleita. Desde a reforma de Tony Blair, ocorrida nos anos 1990, a maioria dos lords tradicionais perderam o direito de assento hereditário na câmara alta.
O tema da reforma da Câmara dos Lordes permanecerá em destaque no Parlamento britânico.
Se a Câmara dos Lordes é hoje o símbolo da crise do modelo parlamentar, que se verifica em todo o mundo, parece ser bom lembrar que, em 2015, se celebrarão 410 anos da “Conspiração da Pólvora”, um episódio histórico até hoje lembrado no Reino Unido e cuja principal personagem, o católico Guy Fawkes, tornou-se o símbolo dos protestos ocorridos no Brasil em 2013, com a máscara usada por centenas de ativistas.
Em 1605, um grupo de conspiradores tentou assassinar o rei Jaime I durante a cerimônia de abertura do Parlamento, que ocorreria no dia 5 de novembro, na Câmara dos Lordes. Guy Fawkes, um experiente militar nas campanhas da Guerra Hispano-Holandesa, foi encarregado de minar os subterrâneos da House of Lords com barris de pólvora. A conspiração foi denunciada e conseguiu-se impedir a explosão. Os envolvidos foram presos, julgados e condenados à morte. Desde então, as noites de 5 de novembro tornaram-se data de comemoração popular no Reino Unido. É a Bonfire Nightou Noite de Guy Fawkes.
Hoje, a efígie de Guy Fawkes difundiu-se na cultura popular contemporânea graças aos quadrinhos de Alan Moore e David Lloyd, posteriormente transformados no filme V de Vingança, de James McTeigue. A máscara com o sorriso e o bigode de Fawkes converteu-se em um símbolo de rebeldia. A metáfora da tentativa de explosão da Câmara dos Lordes e do Parlamento britânico, um atentado contra um rei e os membros do Legislativo, passou por uma releitura e ganhou a simpatia de muitos “indignados”.
Com todos os problemas, o Parlamento e o modelo de democracia parlamentar ainda é a forma possível de filtragem da soberania popular e de transformação de milhões de vontades individuais em algo parecido com o sonho iluminista de uma “vontade geral” ou de uma “vontade nacional”, dois conceitos datados e que merecem ser lidos com a necessária contextualização histórica. É provável que tenha havido a reconversão histórica de um atentado contra o sistema parlamentar, por razões religiosas, no século XVII, em um desejo de implosão do “sistema”, nos dias atuais.
É preciso lembrar, porém, que foi esse modelo falido e criticado que resistiu durante os trágicos anos de 1939-1945 ao avanço das forças totalitárias do nazifascismo na decadente Europa dos anos 1930, com o apoio heróico das forças soviéticas a partir de 1941.
Em 1939, o Reino Unido fez uma declaração formal de guerra às potências do Eixo, algo que foi ridicularizado por Hitler. Essa declaração foi lida por um arauto, com trajes do século XVII, na entrada do Parlamento britânico. E, mesmo após os bombardeios a Londres e a destruição de sua sede, as Câmaras dos Comuns e dos Lordes nunca deixaram de se reunir.
Se não há mais homens e mulheres com a legitimidade ou com as qualidades daqueles tempos sombrios, isso não pode ser afirmado peremptoriamente, embora haja suspeitas a respeito de que isso é verdade. Independentemente dessa visão pessimista, o modelo parlamentar merece ser defendido, com todas suas contradições e mazelas. A democracia ainda precisa do Parlamento. A História comprova que os inimigos do Parlamento nunca desejaram outra coisa que não o poder absoluto. E não se precisa sair do Brasil para saber disso.

1A íntegra, em inglês, da nova lei está disponível em: http://www.legislation.gov.uk/ukpga/2014/24/pdfs/ukpga_20140024_en.pdf. Acesso em 9-7-2014.

2De acordo com o Serious Crime Act 2007, são assim considerados delitos como tráfico de drogas, tráfico de pessoas, tráfico de armas, roubo, lavagem de dinheiro, sonegação fiscal, corrupção, chantagem, crimes contra a propriedade industrial, crimes ambientais de entre outros.
Otavio Luiz Rodrigues Junior é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

Revista Consultor Jurídico, 16 de julho de 2014, 08:05h

terça-feira, 15 de julho de 2014

Ascensão neonazista preocupa Alemanha

POR *ALISON SMALE*

DORTMUND, Alemanha - Ele é conhecido como SS-Siggi. Com sua corpulência e tatuagens dizendo "Germania", certamente parece perfeito para o papel. Há 30 anos, período que incluiu diversos desentendimentos com as autoridades, Siegfried Borchardt está envolvido na militância de extrema direita dessa sombria cidade de 600 mil habitantes. Neste mês, ele assumiu seu posto na Câmara de Vereadores de Dortmund, que tem 94 membros.
A ascensão de Borchardt esvaziou a imagem que a Alemanha faz de si mesma como país alérgico ao nacionalismo e ao populismo, sentimentos que vêm ganhando terreno em outras partes da Europa.
Dortmund é uma cidade carvoeira e um polo siderúrgico em decadência, no coração industrial do país, o Ruhr. Aqui, os empregos são escassos e a criminalidade é mais alta do que a média em alguns bairros. Quase um terço dos moradores tem origem estrangeira.
A eleição de Borchardt, em maio, tanto chocou quanto dividiu os moradores, expondo muitas tensões -não só entre os alemães nativos e os imigrantes mais recentes, mas entre os diversos grupos de imigrantes que existem na cidade. Quando Borchardt e cerca de duas dúzias de neonazistas tentaram entrar em uma festa pós-eleitoral em maio, surgiu uma briga na escadaria da prefeitura. Um grupo gritava: "Fora, estrangeiros!". O outro respondia: "Fora, nazistas!".
Quando Borchardt chegou à câmara para assumir seu posto, acompanhado por 15 de seus amigos, a polícia optou por não correr riscos. "Mais policiais que políticos", noticiou o jornal local, "Ruhr Nachrichten", em seu blog em tempo real, quando Borchardt e seus colegas foram recebidos por 200 antinazistas reunidos para vaiá-los.
Borchardt fez parte da torcida organizada Borussenfront, do time local de futebol, o Borussia Dortmund, nos anos 1980. Dortmund, desde essa época, tinha a reputação de ser um dos polos de atividade dos 9.600 alemães que o serviço de inteligência interno do país estima serem militantes ativos de extrema direita.
Um relatório apresentado pelo ministro do Interior Thomas de Maizière fez um alerta sobre a intensificação da atividade da direita, especialmente o assédio a estrangeiros e pessoas em busca de asilo. "Eles tentam constantemente envenenar a atmosfera", disse o ministro sobre os extremistas.
Alguns partidos neonazistas foram proscritos na Alemanha, mas outros conseguiram sobreviver agindo cuidadosamente para não cruzar as fronteiras da lei. O Partido Nacional Democrático (NPD) da Alemanha, neonazista, conquistou um assento no Parlamento Europeu na recente eleição da União Europeia. Os neonazistas têm representação legislativa em dois dos 16 Estados da Alemanha.
Borchardt, que não foi localizado por telefone ou e-mail para comentar, disputou o posto de vereador defendendo a agenda de combate à imigração da extrema direita, conhecida como "Alemanha para os alemães".
Ilsegret Bonke, 82, que vive há 52 anos no norte de Dortmund, é uma das poucas moradoras de etnia alemã que restam em seu bairro. Recentemente, ela assistiu com satisfação à ação policial que capturou um adolescente cigano que, segundo ela, havia arrancado sua peruca na rua três dias antes. "Eu o reconheci e chamei a polícia", disse. "Ficar de olho nos delitos dos ciganos me mantém jovem", disse Bonke sorrindo.
Khalid Moummou, 44, barbeiro nascido em Fez, no Marrocos, estava indignado.
"Vivemos com medo", disse, acrescentando que foi assaltado duas vezes nos últimos meses. Ele atribui os crimes aos ciganos vindos da Bulgária e da Romênia, dois países da União Europeia cujos cidadãos têm livre trânsito na Europa.
"Para que pago impostos?", questionou. "Viemos para cá em busca de paz e segurança -é isso que a Alemanha é. Segurança é a melhor coisa que se pode ter. Mas agora isso se foi."NYT, 15.07.14
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Reino Unido sofre crise de identidade: País busca nova imagem global após série de problemas

ENSAIO - STEVEN ERLANGER

LONDRES - O Reino Unido está deitado no divã. De repente, o país parece incerto de sua identidade, do lugar que ocupa no mundo e de suas relações com seus familiares mais próximos e seus vizinhos.

O país está tendo uma espécie de colapso nervoso, e seus amigos não sabem se deveriam dizer alguma coisa ou se devem desviar o olhar. Muitos britânicos se perguntam: "A Escócia ainda nos ama? Ela vai ficar conosco ou vai votar pelo divórcio?
Mesmo que a gente não ame a União Europeia, será que realmente queremos abandoná-la? E, se a deixarmos, a América ainda vai achar que tem uma 'relação especial' conosco, ou será que está mais comprometida com outros, como Pequim ou Berlim?"
Os britânicos se perguntam se ainda estão em condições de se sentar à mesa das potências internacionais. Mesmo que conservem seu poder de dissuasão nuclear, será que realmente querem um Exército menor do que é o Exército britânico desde Waterloo? Depois de Tony Blair, do Iraque e do Afeganistão, intervir militarmente ao lado dos americanos ficou um pouco difícil, tanto assim que o primeiro-ministro conservador David Cameron pôde perder um voto no Parlamento sobre uma questão crucial -bombardear ou não a Síria- e não se sentir na obrigação de apresentar sua renúncia.
A rainha Elizabeth 2a é fantástica, experiente e confiável. Mas e um possível rei Charles 3°? Divorciado, impaciente, intrometido -alguns sugerem que se pule uma geração para chegar diretamente ao jovem e simpático William, com sua mulher bonitinha e filhinho perfeito.
E há o estranho governo de coalizão, o primeiro em décadas, e líderes partidários aos quais falta certa dose de credibilidade. Sem falar nas discussões intermináveis sobre imigrantes todos do leste europeu, o que dirá muçulmanos. A BBC está manchada por escândalos, e, depois dos julgamentos por escutas telefônicas, até os tabloides estão tendo que tomar cuidado. E não vamos nem falar da humilhação sofrida na Copa do Mundo.
Segundo Cameron, é hora de serem restaurados os "valores britânicos", mesmo que ninguém saiba definí-los com precisão.
Uma pesquisa no Reino Unido foi reveladora. Em 2003, 86% dos entrevistados achavam que era importante falar inglês para ser considerado "verdadeiramente britânico". Hoje, 95% são dessa opinião. Enquanto em 2003 69% consideravam que era fundamental ter passado "a maior parte de sua vida" no Reino Unido, hoje são 77% que pensam assim.
"Acho que não passamos por uma fase tão atribulada desde que seu pessoal se separou de nós", disse Martin Woollacott, editorialista do "Guardian", aludindo aos Estados Unidos. O referendo escocês em setembro, a eleição geral em maio próximo e a promessa de Cameron de promover um referendo para determinar a permanência ou não do Reino Unido na União Europeia "vão afetar nosso futuro profundamente", disse ele. "Todos esses fatores podem fragmentar o Estado ou tirar o Estado da UE." Independentemente do que vier a acontecer na Escócia, disse Woollacott, "tem que haver um novo início na política britânica".
É tudo muito diferente do Reino Unido mais pobre e muito menos cosmopolita que conheci mais de 30 anos atrás, quando aqui cheguei para viver como jornalista. Na época, Margaret Thatcher tinha acabado de conquistar sua vitória militar nas Falklands. Ela mudou o Reino Unido de dentro para fora, humilhando os sindicatos militantes e impelindo o Partido Trabalhista para um necessário confronto com a modernidade. Era admirada por muitos, desde a Casa Branca de Reagan até o Kremlin.
O historiador Simon Jenkins acha que, embora o país esteja passando por um período de perplexidade, ele é hoje um lugar mais autoconfiante do que era na década de 1970. Naquele tempo ouviam-se clichês sobre "o mal britânico" e "o doente da Europa". Isso, segundo ele, não existe mais.
Mesmo assim, para ele, o país cometeu erros graves -por exemplo, "ter se aliado estreitamente demais aos EUA em sua explosão neoimperialista" sob a égide de George W. Bush. "Nos embriagamos com o dinheiro, ignoramos a desigualdade, as províncias e o lado negativo do consumismo e do crédito. E nunca fizemos as pazes com a Europa."
Quando propus a um grupo de britânicos do establishment um diagnóstico da neurose nacional, ouvi uma espécie de suspiro coletivo. David Howell, hoje barão Howell de Guildford e ex-ministro do gabinete conservador, respondeu em "The World Today", revista do Instituto Real de Assuntos Internacionais.
"Injusto?", escreveu. "Com certeza. Irritante? Muito. Mas com um tom verídico que enfurece. Não se sabe bem como, no palco mundial em rápida transformação, a história britânica parece ter ficado mais confusa."NYT, 15.07.2014