quinta-feira, 27 de novembro de 2014

O diabinho que habita a alma

Eliminar o racismo exige uma revolução cultural superior à eleição de um presidente negro

O que sempre me fascinou nos EUA é a mobilidade social que oferece (ou oferecia, porque a crise derrubou-a) e, por extensão, a diversidade étnica de sua população.
Surpreendeu-me, por exemplo, travar conhecimento com um afegão, o primeiro que encontrei na vida, exatamente nos Estados Unidos.
Era o taxista que me levou do aeroporto ao hotel em Denver.
Estamos falando de 1997, antes, portanto, da invasão norte-americana ao Afeganistão. O taxista, que fugia do Taleban, falou muito bem da acolhida que tivera.
Não deve ser o único imigrante feliz, a julgar pela quantidade fenomenal de estrangeiros que procuram fazer a América.
Já esqueci o número exato, mas são mais de cem os idiomas falados no serviço telefônico de emergência de Los Angeles --evidência óbvia do número e diversidade de estrangeiros que procuram a cidade.
Por tudo isso, fica ainda mais chocante a permanência do racismo, como demonstrado pelos incidentes dos últimos dias.
Depois que os norte-americanos elegeram e reelegeram um negro à Presidência, era de supor que a desconfiança recíproca entre negros e brancos fosse coisa do passado.
Engano, como escreve Michael Wines no "New York Times": "Uma nação com um presidente afro-americano e uma classe média negra significativa, ainda que em dificuldades, permanece profundamente dividida a respeito do sistema judicial, tal como estava décadas atrás".
Os números mostram os motivos da divisão: os negros são 13% da população total, mas formam 40% da população carcerária; 3% de todos os homens negros estavam presos no fim de 2013, quando a taxa entre brancos era de apenas 0,5%.
Em 2011, 1 de cada 15 afro-americanos tinha o pai preso; entre brancos, a proporção era de 1 para 111.
É inevitável que parcela importante de brancos veja um negro e pense logo num bandido, assim como um negro olha para um policial branco e vê um racista arbitrário.
Não é uma afirmação empírica: Wines cita pesquisa Huffington Post-YouGov desta semana em que 62% dos afro-americanos dizem que o policial (branco) Darren Wilson errou ao atirar no negro Michael Brown, opinião que apenas 22% dos brancos compartilhavam.
Note-se que até um líder negro destacado, como o reverendo Jesse Jackson, esconde, no fundo d'alma, um demônio racista, conforme recordou nesta quarta-feira (26) Marc Bassets em "El País".
Frase de Jackson: "Nada me dói tanto a esta altura da vida como ouvir passos atrás de mim, começar a pensar que me vão roubar e, então, olhar para trás e respirar aliviado ao ver que é alguém branco".
Foi esse sentimento desumano que plasmou toda uma legislação segregacionista durante séculos.
O fato de ela ter sido derrubada aos poucos não bastou para matar todos os demônios racistas que habitam os seres humanos.
Será preciso toda uma revolução cultural e mental, por meio de uma ativa educação à convivência, para que um negro possa sentir-se tão à vontade nos EUA como um afegão. Atenção, isso vale também para o Brasil. Clóvis Rossi. Folha, 27.11.2014.

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Negro deve se organizar para ser reconhecido como igual

Para viúva de Nelson Mandela, combate ao racismo depende de mobilização, e é cedo para se falar em 'primavera africana'

FERNANDA MENADE SÃO PAULO
Quando se mudou do interior de Moçambique para a capital, Maputo, para ingressar no ensino médio, Graça Simbine estranhou o fato de ser a única negra em uma classe de 40 alunos.
Começava ali a trajetória de ativista da jovem que se formou em filosofia alemã pela Universidade de Lisboa e, de volta à terra natal, entrou para a história contemporânea da África como guerrilheira da Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique), ministra da Educação daquele país e viúva de dois presidentes do continente.
Ela foi casada com Samora Machel, primeiro presidente de Moçambique independente, e Nelson Mandela, ícone da luta contra o apartheid na África do Sul. "Tive o privilégio de dividir a minha vida com dois homens excepcionais", declarou certa vez.
Após a morte de seu primeiro marido num acidente de avião, em 1986, Machel manteve luto por cinco anos. Após a morte de Mandela, em dezembro do ano passado, a ativista decidiu romper o luto em poucos meses para se dedicar à luta contra o racismo, o analfabetismo e a pobreza, e pelos direitos das mulheres e das crianças.
Neste final de semana, Machel, 69, vem ao Brasil para ser homenageada na Festa do Conhecimento, Literatura e Cultura Negra, que acontece no Memorial da América Latina, em São Paulo (leia mais na página E3).
O evento sucede o Dia da Consciência Negra, celebrado nesta quinta (20). Apesar de reconhecer a importância simbólica da data, ela avalia que há pouco o que comemorar: "A família humana, ainda em 2014, tem preconceitos profundos com relação à pessoa de raça negra."
Leia a entrevista concedida à Folha por telefone.
Folha - Há diferença entre consciência negra no Brasil e na África?
Graça Machel - Sim e não. Sim porque a maior parte dos brasileiros veio da África. Mas os negros no Brasil misturaram-se com uma enorme diversidade de grupos, criando uma identidade diferente daquela dos africanos. Aqui na África, falamos em diáspora negra [imigração forçada pelos séculos de escravidão] e avaliamos que os negros no Brasil são diferentes dos negros da Colômbia, que são diferentes dos negros dos EUA, apesar de todos terem a mesma origem. Nós evoluímos e nos diferenciamos de acordo com os contextos.
Os negros, em geral, seguem em situação socioeconômica desprivilegiada em relação aos brancos. É esta a face atual do racismo?
Os negros no Brasil, nos EUA, na Colômbia e em toda a África ainda sofrem dos mesmos efeitos de serem desfavorecidos e discriminados com base na raça. A família humana, ainda em 2014, precisa reconhecer que tem preconceitos profundos com relação à pessoa de raça negra. Há razões históricas para isso, mas a história evolui e se transforma. E a pessoa de raça negra é que tem de se organizar para reclamar sua identidade e dignidade. Não há ninguém que te vai reconhecer se não valorizares a ti próprio. Cabe a nós reclamarmos o espaço e os direitos que nos são inalienáveis.
A África nunca teve tantos governos democráticos e vê hoje surgir uma pequena pequena classe média. Quais são os principais desafios do continente hoje?
Se fôssemos falar de todos os desafios, conversaríamos por uma semana inteira (risos). O principal deles é a aceitação da diferença como fator de reforço das sociedades e não de seu enfraquecimento: diferença étnica, racial, de gênero e religiosa. No nível político, precisa haver tolerância entre partidos políticos que processam de formas diferentes a construção de uma nação, cuja robustez vai se basear na busca de elementos positivos que conduzam a uma coesão social.
Um segundo desafio é a aceitação da alternância política. Em muitos casos, nós passamos de partidos únicos a democracias multipartidárias. Mas, mesmo nesse modelo, há certa resistência por parte daqueles que detêm o poder e, por isso, vemos países com os mesmos chefes de Estado há 20 ou 30 anos.
O terceiro desafio é o do crescimento econômico, que ocorre sem equidade, o que nos caracteriza como um continente com desigualdade e estratificação social gritantes.
No final de outubro, Burkina Fasso depôs seu presidente, o ditador Blaise Compaoré, que estava há 27 anos no cargo. Fala-se no surgimento de uma "primavera africana", em referência à derrubada de regimes ditatoriais ocorrida em países árabes durante 2011. Podemos assistir à queda de ditadores como Robert Mugabe (Zimbábue) em breve?
Não estou certa de que estamos diante de uma primavera africana. A derrubada do ditador de Burkina Faso é um aviso àqueles que dirigem países há décadas: o que ocorreu ali pode acontecer em outros sítios. Mas as condições são bem diversas entre países e é preciso ter cautela.
A sra. tem militado contra os chamados casamentos prematuros: arranjos em que meninas, às vezes ainda durante a infância, são submetidas a matrimônios forçados.
A questão dos casamentos prematuros forçados é um fenômeno global. Acontece na África, mas também na Ásia e na América Latina.
Quando a família está sob pressão para resolver problemas econômicos, facilmente acredita que pode entregar uma filha a um casamento para aliviar os problemas de pobreza. Mas não é a pobreza que é o problema. O problema é a crença de que há um valor diferente que se atribui a uma mulher e a um homem.
Outro exemplo: não há um único país do mundo que tenha eliminado diferenças salariais entre homens e mulheres que ocupam os mesmos cargos. Para igual trabalho, pensa-se que a mulher pode ganhar menos do que o homem. É a mesma raiz do problema. Assim como no fato de muitos homens se acharem no direito não apenas de bater como de até mesmo matar suas companheiras por causa de um conflito.
Devemos olhar para casamentos prematuros, desigualdade salarial, dificuldade de ascensão e violência contra a mulher pela mesma raiz: não se valoriza a mulher como se valoriza o homem. A questão de gênero é dos maiores problemas que a família humana enfrenta, ao lado da questão da raça. Ambos têm as mesmas características e afetam toda a sociedade. Folha, 20.11.2014.

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

O STF e os índios

Decretar que só as terras ocupadas por índios a partir de 1988 merecem os direitos constitucionais é apagar da memória esbulhos e injustiças

Marinalva Kaiowá morava em um acampamento de lona, nas margens de uma terra que sua parentela tentava reaver havia 44 anos. No dia 1º de novembro, duas semanas depois de ter ido com outros líderes indígenas protestar diante do Supremo Tribunal Federal, em Brasília, ela foi assassinada.
A partir da década de 1940, os guarani kaiowá do Mato Grosso (hoje Mato Grosso do Sul) foram expulsos de suas terras. Já haviam sido vítimas da invasão da Companhia Matte Laranjeira, que arrendou até 5 milhões de hectares na década de 1890. Mas a extração da erva-mate não exige desmatamento e as aldeias continuaram em suas terras.
Quando Getúlio Vargas inicia um projeto de colonização agropecuária na região e é rescindindo, em 1947, o arrendamento à Matte Laranjeira, a situação muda. Os fazendeiros, recém-titulados pelo governo do Estado, usam de todos os meios para "desinfestar" as terras dos índios.
Uns contratam pistoleiros e incendeiam as aldeias kaiowá. Outros se ajustam com funcionários do Serviço de Proteção aos Índios que, com auxílio da polícia, jogam em caminhões e confinam os kaiowá em uma das oito diminutas reservas criadas entre 1915 e 1928.
Essas reservas superlotadas, cujos recursos naturais não permitem um modo de vida tradicional, são focos permanentes de conflitos, suicídios e miséria. Contrastam tristemente com as aldeias kaiowá, as tekoha, cujo nome literalmente significa "o lugar onde vivemos segundo nossas regras morais".
Desde a década de 1940, os kaiowá nunca deixaram de reivindicar suas antigas terras. Muitos, para não abandoná-las, até se dobraram a servir de mão de obra nos chamados "fundos de fazenda".
O Mato Grosso ficou célebre por sua política anti-indígena. A Assembleia Legislativa do Estado chegou a aprovar uma lei, em 1958, que declarava devolutas as terras dos índios cadiveu. Na época, o Supremo Tribunal Federal fez um ato de justiça, até hoje lembrado: em 1961, anulou essa lei absurda.
O Supremo está outra vez em posição de fazer justiça. Mas ameaça agora fazer uma injustiça flagrante. Em 2009, o Ministério da Justiça reconheceu Guyraroká, no Mato Grosso do Sul, como sendo de ocupação tradicional indígena.
A segunda turma do STF, contrariando todos os pareceres anteriores do plenário e a posição do presidente do Supremo, Ricardo Lewandowski, acatou um mandado de segurança e anulou o reconhecimento pelo Ministério da Justiça.
Negou-se aos kaiowá expulsos da aldeia de Guyraroká seu direito ao retorno, por não a habitarem desde a década de 1940! É a tentativa de aplicação automática da controversa teoria do "marco temporal", segundo a qual a Constituição de 1988 só garantiria aos índios as terras que eles estivessem ocupando no dia da promulgação da Carta Magna.
Ignora-se que desde a Constituição de 1934 e em todas as que seguiram, os direitos dos índios à posse permanente de suas terras estava assegurada. E ignora-se uma história de violência e de esbulho.
A Constituição de 1988 inaugurou entre os índios guarani espoliados a esperança de que agora se encontravam em um "tempo do direito".
Como disse um líder kaiowá ao protestar recentemente em Brasília: "A coisa está tão absurda que hoje querem nos penalizar por termos sido expulsos de nossos territórios. Querem que assumamos a culpa pelo crime deles. Durante décadas nos expulsaram de nossa terra à força e agora querem dizer que não estávamos lá em 1988 e, por isso, não podemos acessar nossos territórios?".
Vivemos no Brasil um momento de recuperação da memória do século 20. O esforço para que se conheça essa história tem um motivo explícito: "Para que nunca mais aconteça".
Os kaiowá de Guyraroká lembram-se e têm nomes para cada morro e cada riacho de suas terras espoliadas. O STF também deve zelar para que não se esqueça a história e que injustiças não se repitam. Decretar que somente as terras ocupadas por índios em 1988 merecem os direitos constitucionais permite apagar da memória esbulhos e injustiças.

terça-feira, 18 de novembro de 2014

O que é um povo? Análise de uma fratura biopolítica

RESUMO O filósofo italiano Giorgio Agamben discute os significados do termo "povo", que tanto dá nome ao sujeito político quanto a uma classe que é politicamente excluída, sentidos díspares que geram conflitos. O trecho faz parte do livro "Meios sem Fim: Notas sobre a Política", que a editora Autêntica lança em dezembro.
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1. Toda interpretação do significado político do termo "povo" deve partir do fato singular de que este, nas línguas europeias modernas, também sempre indica os pobres, os deserdados, os excluídos. Ou seja, um mesmo termo nomeia tanto o sujeito político constitutivo como a classe que, de fato se não de direito, está excluída da política.
Em italiano "popolo", em francês "peuple", em espanhol "pueblo" [em português "povo"] (como os adjetivos correspondentes "popolare", "populaire", "popular" e os tardo latinos "populus" e "popularis" dos quais todos derivam) designam, na língua comum como no léxico político, tanto o conjunto dos cidadãos como corpo político unitário (como em "povo italiano" ou em "juiz popular") quanto os pertencentes às classes inferiores (como em "homme du peuple", "rione popolare", "front populaire"). Também em inglês "people", que tem um sentido mais indiferenciado, conserva, porém, o significado de "ordinary people" em oposição aos ricos e à nobreza.
Na constituição americana lê-se, assim, sem distinção de gênero, "We people of the United States..."; mas quando Lincoln, no discurso de Gettysburg, invoca um "Government of the people by the people for the people", a repetição contrapõe implicitamente ao primeiro povo um outro.
O quanto essa ambiguidade era essencial também durante a Revolução Francesa (isto é, exatamente no momento em que se reivindica o princípio da soberania popular) é testemunhado pelo papel decisivo que cumpriu ali a compaixão pelo povo entendido como classe excluída. Hannah Arendt lembrou que "a própria definição do termo havia nascido da compaixão, e a palavra tornou-se sinônimo de azar e de infelicidade -'le peuple, les malheureux m'applaudissent' [o povo, os infelizes me aplaudem], costumava dizer Robespierre; 'le peuple toujours malheureux' [o povo sempre infeliz], como se exprimia até mesmo Sieyès , uma das figuras menos sentimentais e mais lúcidas da Revolução". Mas já em Bodin, num sentido oposto, no capítulo da "República" no qual é definida a democracia, ou "Etat populaire", o conceito é duplo: ao "peuple en corps" [povo enquanto corpo político], como titular da soberania, corresponde o "menu peuple" [pessoas comuns, o povão], que a sabedoria aconselha excluir do poder político.
2. Uma ambiguidade semântica tão difundida e constante não pode ser casual: ela deve refletir uma anfibologia inerente à natureza e à função do conceito de povo na política ocidental. Ou seja, tudo ocorre como se aquilo que chamamos de povo fosse, na realidade, não um sujeito unitário, mas uma oscilação dialética entre dois polos opostos: de um lado, o conjunto Povo como corpo político integral, de outro, o subconjunto povo como multiplicidade fragmentária de corpos necessitados e excluídos; ali uma inclusão que se pretende sem resíduos, aqui uma exclusão que se sabe sem esperanças; num extremo, o Estado total dos cidadãos integrados e soberanos, no outro, a reserva -corte dos milagres ou campo- dos miseráveis, dos oprimidos, dos vencidos que foram banidos.
Um referente único e compacto do termo povo não existe, nesse sentido, em nenhum lugar: como muitos conceitos políticos fundamentais (semelhantes, nisso, aos "Urworte" de Carl Abel e Freud ou às relações hierárquicas de Dumont), povo é um conceito polar, o qual indica um duplo movimento e uma complexa relação entre dois extremos.
Mas isso significa, também, que a constituição da espécie humana num corpo político passa por uma cisão fundamental e que, no conceito de povo, podemos reconhecer sem dificuldade os pares categoriais que vimos definir a estrutura política original: vida nua (povo) e existência política (Povo), exclusão e inclusão, "zoé" e "bíos". Ou seja, povo já traz sempre em si a fratura biopolítica fundamental. Ele é aquilo que não pode ser incluído no todo do qual faz parte e não pode pertencer ao conjunto no qual já está desde sempre incluído.
Daí as contradições e as aporias a que ele dá lugar todas as vezes que é evocado e colocado em jogo na cena política. Ele é aquilo que já é desde sempre e que precisa, no entanto, realizar-se; é a fonte pura de toda identidade e deve, porém, redefinir-se e purificar-se continuamente através da exclusão, da língua, do sangue e do território. Ou seja, no polo oposto, é aquilo que falta por essência a si mesmo e cuja realização coincide, por isso, com sua própria abolição; é aquilo que, para ser, deve negar, com seu oposto, a si mesmo (daqui as aporias específicas do movimento operário, direcionado ao povo e, ao mesmo tempo, voltado para a sua abolição).
De tempos em tempos bandeira sangrenta da reação e insígnia incerta das revoluções e das frentes populares, o povo contém em todo caso uma cisão mais originária do que aquela amigo-inimigo, uma guerra civil incessante que o divide mais radicalmente do que todo conflito e, ao mesmo tempo, o mantém unido e o constitui mais solidamente do que qualquer identidade. Observando bem, aliás, aquilo que Marx chama de luta de classe e que, mesmo permanecendo substancialmente indefinido, ocupa um posto muito central em seu pensamento, não é senão essa guerra interna que divide cada povo e que terá um fim somente quando, na sociedade sem classes ou no reino messiânico, Povo e povo coincidirem e não houver mais, propriamente, povo algum.
3. Se isso for verdade, se o povo contém necessariamente em seu interior a fratura biopolítica fundamental, será então possível ler de modo novo algumas páginas decisivas da história do nosso século. Visto que, se a luta entre os dois povos já estava certamente em curso desde sempre, no nosso tempo ela sofreu uma última, paroxística aceleração. Em Roma, a cisão interna do povo era sancionada juridicamente na divisão clara entre "populus" e "plebs", os quais tinham, cada um deles, suas instituições e seus magistrados, assim como na Idade Média a distinção entre povo miúdo e povo gordo correspondia a uma articulação precisa de diversas artes e profissões; mas quando, a partir da Revolução Francesa, o povo se torna o depositário único da soberania, o povo transforma-se numa presença embaraçosa, e miséria e exclusão aparecem pela primeira vez como um escândalo em qualquer sentido intolerável. Na Idade Moderna, miséria e exclusão não são apenas conceitos econômicos e sociais mas categorias eminentemente políticas (todo o economicismo e o "socialismo" que parecem dominar a política moderna têm, na realidade, um significado político, aliás, biopolítico).
Nessa perspectiva, o nosso tempo não é senão a tentativa -implacável e metódica- de atestar a cisão que divide o povo, eliminando radicalmente o povo dos excluídos. Essa tentativa reúne, segundo modalidades e horizontes diferentes, esquerda e direita, países capitalistas e países socialistas, unidos no projeto -em última análise inútil, porém que se realizou parcialmente em todos os países industrializados- de produzir um povo uno e indivisível. A obsessão do desenvolvimento é tão eficaz no nosso tempo porque coincide com o projeto biopolítico de produzir um povo sem fratura.
O extermínio dos judeus na Alemanha nazista adquire, nessa perspectiva, um significado radicalmente novo. Como povo que recusa integrar-se no corpo político nacional (supõe-se, de fato, que toda sua assimilação seja, na verdade, somente simulada), os judeus são os representantes por excelência e quase o símbolo vivente do povo, daquela vida nua que a modernidade cria necessariamente no seu interior, mas cuja presença não consegue mais de algum modo tolerar. E na fúria lúcida com a qual o "Volk" alemão, representante por excelência do povo como corpo político integral, procura eliminar para sempre os judeus, devemos ver a fase extrema da luta interna que divide Povo e povo. Com a solução final (que envolve, não por acaso, também os ciganos e outros não integráveis), o nazismo procura obscura e inutilmente liberar a cena política do Ocidente dessa sombra intolerável, para produzir finalmente o "Volk" alemão como povo que atestou a fratura biopolítica original (por isso os chefes nazistas repetem tão obstinadamente que, eliminando judeus e ciganos, estão, na verdade, trabalhando também para os outros povos europeus).
Parafraseando o postulado freudiano sobre a relação entre "Es" e "Ich", poder-se-ia dizer que a biopolítica moderna é sustentada pelo princípio segundo o qual "onde há vida nua, um Povo deverá ser"; sob a condição, porém, de acrescentar imediatamente que tal princípio vale também na formulação inversa, que quer que "onde há um Povo, ali haverá vida nua".
A fratura, que acreditavam ter sanado eliminando o povo (os judeus que são seu símbolo), reproduz-se, assim, transformando novamente todo o povo alemão em vida sagrada votada à morte e em corpo biológico que deve ser infinitamente purificado (eliminando doentes mentais e portadores de doenças hereditárias). E, de modo diferente, mas análogo, hoje o projeto democrático-capitalista de eliminar, através do desenvolvimento, as classes pobres, não só reproduz no seu interior o povo dos excluídos, mas transforma em vida nua todas as populações do Terceiro Mundo. Somente uma política que tiver sabido prestar contas da cisão biopolítica fundamental do Ocidente poderá deter essa oscilação e colocar um fim na guerra civil que divide os povos e as cidades da Terra. Folha, 16.11.2014.
GIORGIO AGAMBEN, 72, filósofo italiano, é autor de, entre outros, "Homo Sacer" (ed. UFMG).
DAVI PESSOA, 36, é tradutor, professor de língua e literatura italiana da Uerj. 

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

DIVIDIR A CONTA: Desconto na dívida de Estados e municípios deveria usar fórmula intermediária, para que fatura não caiba apenas ao governo federal

O Senado aprovou na última semana projeto de lei que autoriza um desconto nas dívidas de Estados e municípios com a União.
A medida, por um lado, reduz juros que se tornaram excessivos e dá certa folga aos orçamentos de alguns governos e prefeituras. Mas, ao mesmo tempo, contraria a Lei de Responsabilidade Fiscal e implica prejuízos à União num momento em que cresce o desequilíbrio em suas contas.
A decisão atende a uma reivindicação antiga de administrações regionais que renegociaram seus débitos com a União na década de 1990. Os juros contratuais eram então inferiores à taxa básica da economia, a Selic, que na época chegava a superar 20% ao ano.
De lá para cá, no entanto, o quadro mudou, e os encargos da União, em vez de subsidiar Estados e municípios, ultrapassaram os cobrados na praça. No caso da Prefeitura de São Paulo, por exemplo, a dívida original de R$ 11,3 bilhões chega hoje a R$ 57 bilhões.
A nova regra, se sancionada pela presidente Dilma Rousseff (PT), reduzirá os juros reais (acima da inflação) nos saldos devedores vigentes em 1º de janeiro de 2013, passando-os para 4% ao ano ou a Selic, o que for menor.
Até aí, trata-se de alteração sensata, que repõe o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos.
A armadilha está num detalhe: o substitutivo aprovado abre brecha para corrigir também os saldos devedores. A retroatividade traria encargos de dezenas de bilhões de reais para o Tesouro. A Prefeitura de São Paulo, a principal beneficiada, teria alívio de R$ 25 bilhões.
Prevalecendo a disposição para mexer no passado, o ideal seria encontrar uma fórmula intermediária, capaz de equilibrar os custos entre todos os atores envolvidos.
É preocupante, ademais, que a decisão do Congresso esteja sendo tomada de forma independente de outras que também trazem custos para a União. Nesta semana, por exemplo, a Câmara aprovou em primeiro turno o aumento das transferências do Fundo de Participação dos Municípios, com valor anual estimado em R$ 3,8 bilhões para o governo federal. Está na pauta também o debate sobre a simplificação do ICMS para pôr fim à guerra fiscal. Um dos impasses é o tamanho do fundo de compensação para os Estados que perderem receitas, uma moeda de troca para ordenar definitivamente as regras para concessão de benefícios pelos governos.
A pauta federativa é extensa, como se vê, e deveria ser tratada de forma organizada. O governo federal, porém, até agora não mostrou liderança política e competência executiva para assegurar um resultado conjunto satisfatório para todos. Corre o risco de ser atropelado e pagar a conta sozinho. Folha, 10.11.2014.